Porque razão um projecto de lei chumbado há 2 anos volta à ribalta política, quando a sociologia do pais não mudou, porque não pode mudar em tão pouco tempo? Qual a pertinência do tema num país com tantas carências na área da saúde (promoção da vida por oposição à morte), incluindo os cuidados paliativos?
Reaberto o concurso para PPP na área da saúde, cuja a anulação de contratos foi um dos cimentos da geringonça na legislatura anterior, havia necessidade para o PS de ter uma moeda de troca para contentar BE, PAN e afins. E também de algum modo a vontade velada de entalar o Presidente da Republica, conhecido pela sua posição contra. É lamentável que uma questão de civilização surja como uma arma de jogo político. O povo percebe na perfeição que o que está em causa é o aproveitamento de uma maioria parlamentar circunstancial, e que por estar sujeita a mudança, se aconselharia prudência aos deputados. Acresce ainda que a eutanásia não estava no programa eleitoral do PS e do PSD, e que em questões de consciência individual, os deputados não se representam apenas a eles próprios, mas sim a moral colectiva do povo que representam. Estarei muito atento ao sentido de voto de deputados do PS do distrito de Bragança, entre outros. Este custo de oportunidade é mais uma estrada de tijolos amarelos para o populismo.
A eutanásia nada tem que ver com religião. O ateu Jerónimo de Sousa é contra!
Na minha experiência de médico de quase 30 anos, nunca tive um doente que me pedisse para o matar, e lido com casos limite oncológicos, e não só, que geram situações de sofrimento insustentável para o doente e para os familiares. Sensível ao sofrimento, e consciente da dificuldade em decidir no momento, sempre objectei à distanásia (prolongar a vida e o sofrimento com recurso a tratamentos que não alteram o prognostico da doença), e sempre pratiquei o desinvestimento terapêutico escalonado com medidas de conforto para o doente terminal por compaixão (prática que nada tem a ver com eutanásia). Aprendi com ingleses, durante o tempo em que lá trabalhei, o significado do conceito do “uso inapropriado de recursos de saúde” finitos, significado esse que tem também uma dimensão bioética. A abstenção da distanásia, leva à morte na maioria dos casos na hora certa. A necessidade da eutanásia é um falso problema. Surpreendentemente ou não, apesar de usar uma linguagem apropriada, tenho até uma enorme dificuldade em obter a concordância das famílias para essa suspensão escalonada em muitos casos irreversíveis. Este dado sociológico, que só é perceptível a quem está no terreno, e não no conforto do parlamento, espelha bem a moral prevalente na sociedade portuguesa que tende a considerar a vida humana um dom e um mistério. Os doentes e familiares agarram-se a réstia de vida que têm. E é exactamente esta moral colectiva que deve estar garantida pelo Estado na defesa da vida humana. O Parlamento português não legisla para holandeses!
A maioria dos casos de sofrimento macabro, desumano, resolve-se com cuidados paliativos de qualidade, que não devem ser negados a ninguém. E se há omissões, estas não estão do lado dos médicos, mas sim da falta de estruturas e de apoios para cuidados paliativos. Não peçam as médicos para serem os executores da morte quanto tudo o resto que é necessário para promover uma vida com qualidade, apesar da doença, falta. Não se resolve o desinvestimento em cuidados paliativos com a morte. O que espero dos decisores políticos é que promovam politicas públicas de reforço dos cuidados paliativos, cujos os dados do Observatório da área mostra serem ridiculamente residuais para as necessidades de uma população a envelhecer e com incidência crescente de patologia oncológica ou cardiovascular. Estão cadastrados 60 médicos e 200 enfermeiros, no total um número semelhante aos dos deputados.
Para os adeptos da eutanásia, esgotadas todas a formas de reabilitação, existe o testamento vital que já 25000 pessoas subscreveram, a possibilidade da recusa de tratamento, e por fim o suicídio, assistido ou não, que é uma “liberdade jurídica protegida, fundada no direito ao livre desenvolvimento da personalidade”. Poderão ser deste modo os executores do seu livre arbítrio administrando eles próprios a injecção letal. Coisa diferente é exigir ou obrigar terceiros a realizar esse acto, como os médicos. A aprovação da eutanásia vai conferir ao Estado a obrigação de encontrar alguém que termine com a vida de um cidadão. Não tem que ser nem deve ser um médico. O médico por vocação e treino, promove a vida humana, e não pode estar nesta equação. Assim, também se elimina todo o viés de interpretação, a personalidade ou crenças do próprio médico, ou até os seus interesses mais obscuros.
Neste momento e no enquadramento legal actual, sabemos aonde passa a linha vermelha da oposição entre o direito do indivíduo e a obrigação da sociedade de proteger vidas, no futuro com a aprovação desta lei não saberemos. Mas sabemos o que se passa hoje na Holanda 20 anos depois da aprovação da lei. Contudo, em Portugal, temos o grave defeito de legislar sem estudar e sem avaliar. Aconselho a que se leia de modo exaustivo sobre a experiência de eutanásia na Holanda, já que a eutanásia está legalizada em muito poucos países do mundo. Portugal nada tem que ver com as teorias “libertarias” holandesas e as suas leis permissivas, como as da droga, do sexo ou da pornografia. Na Holanda, uma seguradora paga 3000€ por um acto de eutanásia, onde cinicamente todos ganham, os “médicos” anjos da morte e a seguradora que poupa milhares de euros em tratamentos futuros. Na Bélgica, o anjo da morte Dr. François Damas já embolsou 600 mil euros com o único “acto” médico sem qualquer risco cujo o sucesso jamais se poderá avaliar, ao contrário de todos os outros actos médicos. Quanta perversidade na definição de eutanásia como acto médico, que de facto não é, e que a ser aprovada deste modo fere a essência do acto médico. A experiência da Holanda mostra todo o tipo de aberrações, todos casos de eutanásia que estão a ser revistos não reúnem, na maior parte do casos, o consenso dentro da própria comissão de peritos de avaliação. Na Holanda e na Bélgica, em muitos casos, verificou-se que o consentimento para a eutanásia precedeu em vários anos a eventual doença física. Ou seja, a razão verdadeira para a eutanásia não foi o sofrimento causado pela doença, ainda imprevisível e até passível de adaptação, mas um razão viciosa, relacionada com defeitos de personalidade, carácter, solidão, isolamento social e afectivo. No primeiro caso levado a tribunal na Holanda, a paciente recusou a eutanásia depois de a ter consentido anteriormente. À sua revelia, a família e o “médico”anjo da morte prosseguiram com a eutanásia. Há também registo de médicos que praticaram eutanásia, e que estão a coibir-se de continuar a pratica. Nesta deriva irracional, há dois anos, uma proposta conjunta do ministro da Justiça e da Saúde da Holanda contemplava a distribuição de uma pílula da morte a todos os cidadãos maiores de 70 anos. Procura-se de um modo cínico resolver uma problema demográfico de pirâmide invertida. Neste cenário já nem linhas vermelhas existem! Como facilmente se percebe, o perigo e a insensatez estão na abertura da caixa de Pandora, onde cada um estabelece a sua linha vermelha aonde quiser, e cuja a especificidade a lei não conseguirá prever.
Num futuro próximo o legislador vai também dizer-me que não vale a pena tratar um doente, gastar milhares de euros, que vai morrer a curto prazo mas que ainda ontem era tido como saudável (acontece na Holanda, ou em Inglaterra a propósito da diálise em idosos insuficientes renais). O verdadeiro problema é que vivemos anestesiados numa sociedade do hedonismo, do dinheiro que tudo compra incluindo a morte, do bom e do belo, do eu (quero) eu (posso) eu (mando), mas da mais profunda solidão, mas conectados um telemóvel na mão. O legislador ignora (constato o número muito reduzido de médicos deputados) que o sofrimento humano macabro e atroz NÃO tem lugar pois a medicina já tem hoje soluções. O médico não é o carrasco da morte a pedido, o médico está do lado da promoção da dignidade do homem. O avanço civilizacional não está na aprovação da eutanásia, mas sim no forte investimento em cuidados paliativos de qualidade, na garantia da universalidade de acesso, na formação de médicos para identificarem casos e obstinação terapêutica, da investigação e desenvolvimento da medicina, nas experiências de solidariedade social, no voluntariado, na compaixão.
Óscar Alves
Médico Neurocirurgião