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Retrato de Fernando Pessoa numa ponte partida

Atrás dos óculos falsos, o olhar míope do gênio; atrás do gênio, o sonho longe do Quinto Império; longe do mandarim de condição, longe de conquistar o mundo, no abismo da mansarda, Fernando Pessoa era um homem pobre e sem sossego. Sua geométrica visão da vida não o levou a vencê-la em seu aspecto material.  A infância economicamente garantida foi perdida no insistente never more de cada dia, e o Quinto Império ganhou forças nas aguardentes que velaram os muros desse único território conquistado – a poesia.  No mapa político do Quinto Império haverá uma cor que marcará as divisas da poesia, e nessas estranhas paragens Fernando Pessoa terá seu brasão, terá toda a sua conhecida dinastia.

No entanto, sua vida franciscana, de roupas caras e dívidas frequentes, sucedeu-se de perda em perda, de lutos e segundos lugares, num ascetismo não frugal, mas destrutivo, que o deixou no anonimato dos plebeus. Não lhe sorriu a tranquilidade social. Dos problemas familiares aos financeiros, aconteceu-lhe uma falta qualquer que, numa razão inversamente proporcional, esmagava o homem e projetava uma obra ímpar. Como todos os seus planos falharam, talvez os sucessivos golpes na matéria tenham-no empurrado ainda mais para o espírito, e sua vida foi queimada pela nossa, como ele nos disse:

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.

Oscar Wilde lembra com ternura a tragédia do jovem Cristo que queria carregar todos os pecados do mundo. Fernando Pessoa quis sonhar todos os sonhos do mundo, esses sonhos de morrer e esses sonhos de viver, que também são, no mais das vezes, horrores ou mistérios.  Numa catalogação em abismo das sensações, Pessoa inventariou o homem em suas tantas caracterizações, descrevendo a dor, a esperança e a calma, observando o sagrado, à sombra,  e universalizando todo isso no espírito português. Para nós, sua vida é uma história épica – do poeta de feito único, do divisor de águas, da poesia que ouve nossa dor silenciosa e a expõe bela, pari passu, com a vontade dos deuses ou de Deus (pois a poesia das  sensações é a epopeia do sentir assistido por um Deus que só nos permite sonhar).

Esse tal sensacionismo impacta tanto quanto a estrutura heteronímica que a comporta. Saber que Pessoa foi plural porque sentiu plural, podendo agasalhar-nos a todos, por consolo ou irmandade, no frio gêmeo das expectativas e dos medos, a cada verso dos poetas-ficções; saber que em algum verso pessoano estará a singularidade de cada um de nós, é ainda mais admirável do que seus cento e tantos nomes. Não se pode desconsiderar, que grande leitor e grande fingidor, Pessoa acolheu a tradição e enriqueceu a forma, para fabricar a mais comovente poesia que já houve, uma poesia inteira feita de paixões.

E se para nós, Pessoa deixou uma cadeira preferida onde possamos ler os seus versos, como um salvador, como uma voz que se comunica com a nossa solidão, como um herói pessoal ungido da força dos penates, lembremos que para ele sobraram as situações mais concretas e mesquinhas da vida, dentro de uma solidão sempre confessada e lamentada. Ele que sem ser rei de casa tebana ou troiana tinha de viver a sua tragédia, sempre a construir a heteronímia como um trabalhador explorado imaginando os lordes de Escócia. E agora não sem muito esforço tentemos nos avizinhar da vida desse gênio: ouvir seus nervos, conhecer o peso dos deuses, a ausência ou a presença do mistério, a cara do Esteves, o fim da tabacaria e do planeta. Esse mero exercício nos apavora, queremos logo ser a ceifeira que canta. Não queremos seu destino, nem sua consciência, senão de empréstimo, na mesma cadeira preferida…

Pessoa, no entanto, não fugiu a seu destino, manteve seu trabalho arqueológico e arquitetônico das sensações, sem qualquer remuneração pecuniária, para trazer à linguagem a pureza da sensação exata. Não foi deputado, nem califa, embora houvesse sido se conseguisse, parece mesmo que gostaria, parece mesmo que queria um pouco de tudo. Contudo, no meio de tantas negativas, não deixou de laborar um só dia em seus castelos, sua caminhada de fracassos não o tirou de seu caminho, as angústias materiais do homem não impediram sua apoteose, sua imortalidade. Será que aquele sujeito, algo desajustado na sua miopia, enxergava no futuro o tremular da sua bandeira imperial? Será que no peso das noites de escassez, mantidas a queijo e álcool, ele já podia sentir o carinho do laurel na sua fronte? Ou talvez, estoicamente, tenha feito apenas a sua parte, o que é bem menos provável.

Em tempos tão frios, frouxos e acomodados, pensei em trazer junto a esse pequeno retrato do “supra-Camões” não só uma certa compaixão e gratidão por este nosso gênio de casa, mas também um pouco do seu espírito persistente e sonhador que, como Whitman, pede que as gerações futuras o justifiquem. Com o sincero desejo de que um pouco dessa ambição elevada nos possua e nos tire da miséria cotidiana do medo e da ignorância, então lembro de um Pessoa que chama a todos para reescreverem o mundo. Não deixando de requisitar ninguém para o melhor, para a liberdade, para uma construção constante e mística do todo, o ortônimo chama poetas, santos, heróis, pobres, presentes, futuros e eternos, para dizer que “Não foi para servos que nascemos/ De Grécia ou Roma ou de ninguém./ Tudo negamos e esquecemos;/ fomos para além.” Assim, Pessoa nos incita de dentro dos seus versos e do passado, do altar em que cada casa o coloca, como um deus distante e um igual, ao pé do ouvido, convocando os sacerdotes do Quinto Império para fazerem o que tem de ser feito. Não amanhã, como Álvaro de Campos decide sentado a sua secretária, mas aqui, nesta hora. Nesta mesma hora em que eu, quase conformada, somente escrevo essa minha libação a esse deus português que habita a minha casa; nesta mesma tarde brasileira tão desgraçada que eu vejo da janela, desgraçada como todas as outras tardes brasileiras que foram destinadas à má sorte dessa nossa noite infinita.

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