O Governo resolveu fazer aquilo que deveria ser óbvio para toda a gente: cumprir a lei. E o que anunciou? Que ia rever, caso-a-caso, os contratos de associação do Estado com escolas do Ensino Particular e Cooperativo, porque não faz sentido financiar escolas privadas em locais em que há oferta suficiente de escolas públicas. Mas acrescentou que o facto de a lei não ser cumprida há muitos anos, com a complacência de governos do PS e do PSD que cederam ao poderoso lobby das escolas privadas, não é razão para continuar a não a cumprir, mas antes forte incentivo de censura a um Estado que gere mal o dinheiro que os contribuintes lhe entregam com os seus impostos. Consequentemente, a Secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão, numa excelente intervenção na Assembleia da República durante a audição ao Ministro da Educação a propósito do Orçamento de Estado para 2016 (19 de Abril de 2016), deixou muito clara a intenção do Governo e a fundamentação dessa intenção. Estranhamente, ou talvez não, essa intervenção não passou nos órgãos de comunicação social, mas o leitor interessado pode ver o vídeo no site do canal parlamento na internet: basta selecionar a comissão de educação.
A direita, isto é, aquilo em que infelizmente se converteu o PSD e o CDS, que defendeu enquanto esteve no Governo e na respetiva campanha eleitoral, o combate às gorduras do Estado, a uma economia baseada em subsídios e que só sobrevive pendurada no Estado e nos parcos recursos dos contribuintes, o combate a sobreposições e gastos desnecessários, o reforço da eficiência do Estado no cumprimento das suas obrigações constitucionais, a racionalização da despesa pública aliviando o Orçamento de Estado do peso de todo o tipo de rendas, compromissos desnecessários e até ilegais, aparece surpreendentemente, e num comportamento esquizofrénico, a defender que o Estado não só respeite as opções individuais mas também as suporte. Este caso, absolutamente lamentável, é bem o exemplo da profunda confusão existente entre obrigação constitucional de financiar a escola pública, laica e fonte de igualdade de oportunidades, com uma suposta liberdade de opção que só seria garantida com a escola privada. Ora, convém esclarecer que os contratos de associação são um recurso do Estado para suprir dificuldades da sua oferta pública. Estes contratos estão previstos no Decreto Lei 152/2013 de 4 de Novembro, que define o estatuto do ensino particular e cooperativo, e definidos em detalhe numa portaria conjunta do Ministério das Finanças e do Ministério da Educação, Ciência e Ensino Superior – Portaria 172-A/2015 de 5 de Julho. Nessa portaria, definem-se as regras dos concursos conducentes aos contratos de associação, estipula-se que estes se realizarão de 3 em 3 anos e apresentam-se as minutas dos contratos a realizar. O concurso referente ao triénio 2015-2018 foi lançado por despacho do Secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar em 15 de Junho de 2015. Nele se definem as condições de acesso, critérios de avaliação, júris do concurso, etc., bem como a lista de turmas colocadas a concurso divididas por área geográfica de implantação dessa oferta (Anexo I do referido despacho). E para quem tivesse dúvidas do que quer dizer implantação geográfica, e qual seria a medida de referência para a delimitação dessas áreas, o despacho esclarece (também no Anexo 1): “A Unidade de referência para a delimitação das áreas geográficas de implantação da oferta é a unidade administrativa da freguesia, tendo sido tomados em linha de conta os seguintes critérios da delimitação da área geográfica: i) A dimensão territorial da freguesia; ii) A densidade demográfica da freguesia: iii) as acessibilidade e rede de transportes; iv) A implantação na área, de oferta constituída por estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo com autorização de funcionamento para os diversos ciclos de escolaridade e oferta de associação”.
Consequentemente, os contratos de associação, como mecanismos do Estado para suprir dificuldades na rede da escola pública, só se devem manter na exata medida dessas dificuldades. Por isso os contratos são feitos por períodos de 3 anos e avaliados caso-a-caso, só devendo persistir aqueles que correspondem a falhas da rede pública. É isso que esclarece o Despacho Normativo 1H/2016, que cumpre a lei e respeita integralmente os compromissos anteriormente assumidos, sem interrupção de ciclos letivos iniciados e sem sequer impedir que outros se iniciem, desde que necessários (como exige a lei, e num Estado de direito a lei é para cumprir). Tudo isso foi esclarecido de forma muito clara na Assembleia da República pela Secretária de Estado Alexandra Leitão, pelo que nem a argumentação de inabilidade política da equipa ministerial consigo subscrever na totalidade. Mas mesmo que existisse, não vê o leitor nada de positivo, vontade reformista e determinação na atuação da atual equipa ministerial? Devemos todos, à menor falha, atirar a matar, cedendo ao interesse de grupos de pressão sempre prontos a pendurar-se no Estado ao arrepio da lei? Não é isso que andamos a fazer há dezenas de anos, com os resultados que estão à vista? Então a liberdade de opção em termos de escolhas educativas, recusando as opções da rede pública (portanto, do Estado no cumprimento das suas obrigações constitucionais), devem ser suportadas por esse mesmo Estado que tem oferta em paralelo na mesma área geográfica que não é integralmente aproveitada? Não é o Estado suportado pelos impostos dos contribuintes? Não somos nós todos que andamos a pagar todo este desnorte? Quem tem medo da lei, da análise rigorosa caso-a-caso e de uma reforma exaustiva de um Estado cheio de rendas, de abusos, de delapidação do erário público, etc., cujas consequências são usadas para mais austeridade e mais sacrifícios? Que ciclo vicioso é este que impede, ao abrigo de todos os pretensos direitos e de todos os arrepios à lei, que sejamos capazes, de forma partilhada, pública e transparente, analisar o que queremos, como queremos e como devem ser aplicados os parcos recursos deste país?
Há de certeza uma enorme reforma a fazer, mas desistir da Escola Pública, que é para mim um dos pilares da democracia e da liberdade, sem sequer o tentar é inaceitável. Infelizmente toda a gente quer “a sua escola”, “as suas opções”, a “sua liberdade de escolha” e tem o “seu significado”. A Escola não é de ninguém, nem é uma visão particular seja lá de quem for. É uma APOSTA coletiva no futuro. E por isso tem de ser permanentemente debatida de forma clara, pública e participada. E as conclusões escritas na constituição para que sejam realizadas. Até prova em contrário, existe uma constituição que diz o que diz, e leis que regulam o funcionamento do ensino particular e cooperativo. A lei tem de ser cumprida. O que eu desejo é que o país seja capaz de, com serenidade, debater o que quer, de forma livre, reformando esta área essencial ao nosso futuro como nação e como povo.
(Parte deste texto foi publicado no Diário As Beiras de 5 de Maio de 2016)