Eles relativizam tudo, metendo estratégica e hipocritamente tudo no mesmo saco! E assim vão logrando neutralizar o impacto político e social dos recém-descobertos ficheiros do Panamá. É claro que já todos sabíamos que há paraísos fiscais! É claro que já todos sabíamos que há fugas aos impostos! É claro que já todos sabíamos que há corrupção nos mundos da política, dos negócios, do futebol, etc. É claro que já todos sabíamos que é impossível acabar com os offshores! É claro que sim! Os ficheiros do Panamá revelam contudo dois factos muito importantes:
- Apresentam provas iniludíveis sobre quem usou os chamados paraísos fiscais, eventualmente sobre quem deveria ter pago honestamente impostos no seu país, e não o fez! Estamos a falar de gente muito pouco recomendável, sem quaisquer escrúpulos, que tem vindo a fugir ao dever cívico de pagar impostos, abalando assim democracias e prejudicando imperdoavelmente a vida de todos os seus concidadãos e respectivas famílias.
- Os ficheiros que vieram (e que ainda hão de vir) a lume põem igualmente a descoberto as negociatas criminosas de uma parte das «elites de lixo» de muitos países, negociatas essas que escondem tráfico de armas, de drogas, de obras de arte e até, eventualmente, de seres humanos.
Sublinhe-se ainda que, em Portugal, até foi possível, por três vezes (pasme-se!), «lavar dinheiro» ilegalmente posto em offshores pela módico imposto de 2% a 7,5%! Ao longo dos últimos anos, vários governos portugueses permitiram que ricos e poderosos legalizassem, a preço de saldo, o dinheiro que tinham posto à socapa em paraísos fiscais.
O Regime Excepcional de Regularização Tributária (RERT) que regulamentou o primeiro perdão fiscal em 2005, pelo governo de José Sócrates, permitiu «legalizar» a 2,5% (caso o capital fosse reinvestido em dívida pública) ou a 5%, a situação de todos os capitais que até 31 de Dezembro de 2004 estivessem fora do território nacional e por declarar. O processo foi gerido pelo Banco de Portugal e o fisco não teve acesso às declarações entregues pelos contribuintes que aderiram ao regime. Em causa estiveram depósitos bancários, acções, seguros de vida, fundos de investimento e outro tipo de valores mobiliários, mantidos à margem do fisco português.
Em 2010 foi aprovada uma nova amnistia fiscal, o RERT II, a uma taxa de 5%. O ex-presidente do BES assumiu publicamente ter aderido ao RERT II, que se aplicava a dinheiros não declarados em Portugal. Em 2012, durante o governo de Pedro Passos Coelho, surge o RERT III, o terceiro perdão fiscal, a uma taxa de 7,5%.
Vale a pena lembrar que todos os outros cidadãos portugueses com rendimentos iguais ou superiores a 10.000 euros estavam (e estão) obrigados a pagar impostos que podem chegar até 50%! Estamos obviamente a falar dos portugueses que pagam a horas, pois os que pagaram mais tarde ainda estariam sujeitos às penalizações impostas pela lei. Compreende-se assim que não haja dinheiro para pagar os apoios sociais a que os cidadãos têm direito, pois só a classe média e a classe média baixa é que têm vindo a pagar impostos neste desgraçado país.
Não nos deixemos intimidar perante a magnitude das burlas generalizadas, algumas das quais até legais, baixando impotentemente os braços! Não nos deixemos enganar por discursos hipócritas que têm vindo amiúde a terreiro, justificando pateticamente o recurso a offshores com estratégias de competitividade das empresas. Não desistamos de lutar por democracias mais transparentes e, concomitantemente, mais saudáveis. A força da nossa indignação é a nossa única arma. Adoptemos, pois, com perseverança e sem medo, a lúcida atitude do Sísifo de Miguel Torga, a única que realmente nos dignifica:
SÍSIFO
Recomeça
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga, Diário XIII.