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Estarão em causa a formação e a investigação científica em saúde?

Quando uma lei requer múltiplos esclarecimentos e interpretações sobre o seu significado, indica que se trata de uma má lei. E quando uma lei é má, deve ser rapidamente revista, para não colocar em causa os projetos e a vida dos cidadãos por ela abrangidos.

O Ministério da Saúde promulgou há alguns dias um decreto-lei em que, a propósito dos princípios gerais da publicidade a medicamentos e dispositivos médicos e do princípio da transparência, insere um artigo (art. 9º) em que proíbe os estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS) de receberem directa ou indirectamente benefício pecuniário da indústria farmacêutica que possa vir a afectar a isenção e imparcialidade. Acresce, ainda, no seu parágrafo 3, que “as acções de natureza científica ou outras (sublinhado do autor)(…) não podem possuir carácter promocional, nem ser patrocinadas por empresas (…) vendedoras de medicamentos(…).”

Este articulado vem afectar directa e gravemente as iniciativas de formação contínua de TODOS os profissionais de saúde do SNS, colocando-os em desvantagem face aos seus colegas da medicina privada. Dificulta imenso a divulgação científica e dá azo a que se criem formas menos claras de se organizarem os eventos científicos pelos serviços do SNS, que têm brio nas suas organizações científicas e que acreditam que devem ter um papel activo na formação contínua dos seus profissionais. Penso que o Sr. Ministro da Saúde consegue, com esta lei, criar mais alguns, para juntar aos já inúmeros obstáculos que desanimam os (cada vez menos) resistentes do SNS e levá-los ou à saída do serviço ou a uma existência inerte e vegetante.

Por outro lado, não deixa de ser curioso que se proíbam os eventos científicos, que estavam sujeitos a normas de transparência muito elevadas, e que se isentem as visitas e o regime de acesso dos delegados de informação médica (que me merecem o máximo de respeito), porque esses sim, constituem objectivamente um veículo de informação, mais comercial e menos científica, do que qualquer evento científico.

Mas acrescem a todas estas objecções duas outras, a meu ver, também de importância fulcral no contexto da sustentabilidade e do prestígio do SNS.

A primeira está relacionada com o pagamento, pelas farmacêuticas, de exames complementares de diagnóstico que servem para seleccionar doentes para um determinado tipo de tratamento dirigido a alvos moleculares específicos, e que são, grande parte das vezes, a única alternativa terapêutica disponível para esses doentes. Sim, há exames que são pagos pela indústria, que permitem avaliar quais os doentes que mais beneficiam de um medicamento específico, devidamente autorizados pelos Conselhos de Administração e pelo INFARMED. De acordo com esta legislação, as unidades do SNS deixam de poder receber esses pagamentos e, consequentemente, de realizar os referidos testes, perdendo os doentes o acesso a esses medicamentos.

A segunda objecção prende-se com a investigação clínica que, na sua grande maioria, é patrocinada pelas farmacêuticas, recebendo as unidades do SNS o pagamento contratualizado por tal. Também esta relação está devidamente autorizada pelo Conselho de Administração e pelo INFARMED. À luz da nova legislação, as unidades do SNS deixam de poder receber esses pagamentos e, assim, de poder realizar investigação clínica. Sabendo-se actualmente que a qualidade de um serviço também se mede pela qualidade da investigação clínica que desenvolve, esta lei vota ao ostracismo a importância da realização de ensaios clínicos no SNS.

Quer uma actividade quer outra fazem com que os estabelecimentos de saúde do SNS recebam importâncias monetárias que, de acordo com o parágrafo 1 do artigo 9º, deixam de poder arrecadar. E ambas têm por inerência, um carácter promocional de medicamentos e, assim, pelo parágrafo 3 do artigo 9º, deixam de se poder realizar.

Sr. Ministro da Saúde, esta é uma má lei, que não beneficia em nada o SNS nem os seus profissionais, com grave prejuízo para os seus utentes.

 António Araújo

Director do Serviço de Oncologia Médica do Centro Hospitalar do Porto

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