Blogue Insónias

Entre mundos – fronteiras do Eu

Tentando me fitar nos olhos diante do espelho me veio a imagem de vários que sou e quem fui. Nascido na Avenida Paulista, na maternidade Matarazzo, era uma mistura de pequeno indígena, brasileiro, um filho do Paraíso (bairro situado ao fim da avenida Paulista), de Alto da Lapa, com uma mistura orgânica de Portugal,  Campanhã e Marco de Canaveses. Várias metades de ser, miscigenação, interracial, talvez um mouro longínquo, musicalmente negro africano. Mas quem de verdade sou? De que elemento é constituída minha identidade?

Sempre questionei o bairrismo ou a ideia de identidade nacional ou a nacionalidade pura. Achava graça quando via discussões acirradas de primos querendo gerar polêmica sobre a melhor localidade do Porto como parte do atributo de sua própria identidade: sou melhor por que cresci nas Fontainhas ou nos arredores do estádio do Benfica? Quantas ideologias e identidades sobrepostas em narrativas e discursos auto biográficos perante nossa história? Quantas metades somos de existência? E quanta auto importância não nos damos diante de uma ideologia, de um imaginário, de uma narrativa que acentua fantasias para a construção de uma cultura ?

Como professor universitário e pesquisador na área de saúde mental achava interessante o discurso de globalização dos anos 80 e 90 e o medo da dissolução de identidades e culturas diante de um pensamento hegemônico. Vários pacientes que atendia tinham este medo. Houve algum tempo em que o mundo não foi globalizado? Existiu, em algum período histórico, uma raça pura sem influências ou influenciados? O absurdo de Camus é este estrangeiro que nos co- habita. Hoje percebo as pessoas, relatos de meus pacientes, falando o quanto se sentem estranhos, estrangeiros na sua própria rua, bairro, cidade. A consciência de um estrangeiro, às vezes estranho no próprio grupo familiar, com mesmo laço de sangue, criação, hábitos mas tão diferente… Conceito proposto por Freud ou o mergulho no inconsciente psicóide anteriormente descrito por Jung?

Hoje me fito no espelho e vejo um descendente de português, nascido em São Paulo, goiano de coração. Misturas, pedaços, laços, tantos de um Eu que se remodela a cada vez que passeio pela internet, ou quando releio os clássicos da literatura universal. E lá ousamos penetrar no campo das tradições resgatando o conceito proposto por C. G. Jung dos arquétipos, revisitado nas pesquisas sobre DNA da última década, relembrando que o que sou advém de uma ancestralidade que se perde diante do tempo. Minha, nossa genética não reconhece as barreiras dessa nacionalidade que não passa de um discurso imaginário. Somos, de verdade, todos irmãos de laço, sangue. Dividimos espaços geográficos diferenciados, mas comportamos na essência da vida traços que não fogem a temática de uma raça que, misturada, é única

 E aqui no Centro-Oeste do Brasil me divirto comendo tremoços, bolinho de bacalhau, tomando vinho, cantando para os amigos nas noites de frio. Rui Veloso sabendo que aqui pertenço a um mundo que migra, perambula sem nada fixo ou estático. Minha história é feita de bocados e a anunciação para um sentido de vida.

Quantas neuroses não assistimos no consultório em nossa prática profissional como analista e psicólogo clínico advindas da distorção de uma história de vida? Há algum tempo atendi um senhor que viajava muito a negócios. Representante de uma multinacional, sua casa era a poltrona de um avião. Homem bem sucedido, maduro, mas como a vida pessoal complicada primeiro por não saber mais os traços de sua própria auto biografia. Negava suas origens, seu passado, sua história. Segundo por ser permissivo demais, muito adaptado ao mundo exterior, negando seus anseios e desejo, seu inconsciente e sentido de vida. A depressão que o assolava, complicada nas várias noites sem sono, traziam à tona um vazio. Bem financeiramente e profissionalmente, saciava apenas as delícias do dia a dia e vivia apenas de forma instintiva e materialista, com raros vínculos, amigos, familiares. Triste um individuo que se estranhava, sem local, sem ter para onde voltar. Um estrangeiro de si mesmo, diferente de tudo que outrora sonhou. Perdeu a habilidade criativa de juntar os vários pedaços para compreender o sentido de sua própria existência, o que juntos, em terapia, resgatamos. Poder se ver nos olhos diante do espelho e se reconhecer lembrando sua própria origem, e ter uma história para contar aos filhos e netos na fogueira em uma noite de luar… Cá estou!

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