As especialidades
Mas importará um breve revisitar de alguns desenvolvimentos da questão das especialidades na enfermagem para se perceber como chegámos, onde chegámos, e anteciparmos o que poderá vir a acontecer a breve trecho.
Dos Bacharéis à Especialidade
Basta recuarmos até 1995, para vermos enfermeiros bacharéis a fazerem a especialidade para obterem a licenciatura e assim poderem dar resposta a uma necessidade criada pela legislação quer do sistema quer da carreira – acederem ao cargo de chefia.
Bem sabemos a quantidade de enfermeiros que nunca chegaram a exercer como especialistas, passando automaticamente para cargos de chefia, numa altura em que não havia regulamentação de competências de gestão em enfermagem, como temos desde 2015. Portanto, havia especialistas mas não havia ocupação do espaço funcional respectivo no sistema de saúde. E os saltos remuneratórios eram muitas vezes por via do acesso à categoria de chefe, não obstante os concursos para especialistas que também existiram até 2009 (há 8 anos, portanto).
Outro aspecto relevante até 2005, aproximadamente, terá sido a existência de quadros de pessoal nas instituições de saúde, através dos quais se fazia a previsão de necessidades de especialistas e de perfis específicos, ao abrigo da qual se estabeleciam as bolsas anuais para formação. Naturalmente que tal programação permitia antecipar, em cerca de dois anos, os próprios concursos e os respectivos encargos financeiros.
O fim da Categoria de Enfermeiro Especialista
Depois eis-nos chegados, à hegemonia dos EPE e ao fim dos CTFP para enfermeiros, e respectiva carreira, e introdução em força dos CIT que andaram num limbo até 2009, quando surge a base para a negociação de um ACT, que cumulativamente pulveriza a figura do enfermeiro especialista, do chefe e do supervisor. É a horizontalização da carreira, supostamente em linha com as práticas gestionárias das EPE.
Passados 8 anos, nem ACT, nem aumentos, nem diferenciação por competências acrescidas (especializadas). E tudo porque alguém achou que por ser contra a existência de CIT em hospitais do SNS se havia de recusar a negociar um ACT no melhor interesse dos enfermeiros. E como se não bastasse, desaparecem definitivamente os quadros de pessoal, a autonomia gestionária dos EPE transforma-se numa mera fantasia e a contratação em função do perfil profissional (generalista vs especialista vs gestor) vira história de embalar (será que alguém, além de alguns representantes da profissão alguma vez achou que o paradigma de gestão de recursos humanos nos hospitais seria diferente?).
Portanto, antecipava-se a eliminação da figura do especialista e consequentemente de qualquer hipótese de valoração económica do trabalho dos enfermeiros, que não a associada à normal evolução na carreira, e comprometia-se o aprimorar da qualidade dos cuidados, pois se o racional subjacente passou a ser “basta-me andar por aqui para ir progredindo”, todo e qualquer estímulo ao investimento na formação e desenvolvimento desapareceria.
MDP e o DPT (2011 e 2015)
Eis-nos que em 2011 surge o Modelo Desenvolvimento Profissional (MDP – que inclui o Exercício Profissional Tutelado – EPT- e o Desenvolvimento Profissional Tutelado -DPT). Em 2015, com a publicação dos novos estatutos da OE, o Desenvolvimento Profissional Tutelado (DPT) encontra na lei a possibilidade de concretização de um modelo onde todos os enfermeiros evoluirão para especialistas.
Naturalmente que não é despiciente a este processo a lógica subjacente à carreira negociada em 2009, onde os enfermeiros que se tornassem especialistas saltavam automaticamente escalões remuneratórios, mas mais uma vez não se olhou para todo o contexto.
Quem iria determinar o número de especialistas que se poderiam formar e que o sistema poderia acomodar financeiramente?
Não havia quadros de pessoal, não havia carreira, não havia nada que regulamentasse a organização e estruturação do trabalho dos enfermeiros, estava tudo num limbo, quer por força do congelamento das progressões e concursos para os CTFP quer pelo desprezo a que os CIT foram acometidos pelo poder político, pelas administrações e pelas próprias organizações representativas da profissão, que sempre os consideraram como um não-problema.
Além disso, todo o DPT pressupunha várias negociações entre Ordem e tutela, de forma a implementar os mecanismos necessários à sua efectivação, o que deixava antever sérias fragilidades. Seria necessário que tutela e Ordem quisessem o mesmo. Ou seja, estava em curso a acreditação dos contextos formativos com mais de 1000 serviços e 9000 enfermeiros envolvidos no final de 2015 o que iria tornar o DPT possível num espaço de 2 anos consolidando de vez a vertente clínica e corresponsabilizando instituições e o Ministério da Saúde pela formação avançada de enfermeiros, logo demonstra que o caminho estava a ser feito com sucesso.
Atual Ordem não quer o DPT
Em Março de 2017, o Conselho de Enfermagem vem dizer que concorda com a especialidade de perioperatório quando ela já foi aprovada pela Assembleia-Geral em 2015, mediante proposta do Conselho Diretivo fundamentada na proposta do Conselho de Enfermagem, portanto, uma total confusão. Um ano antes, em 2014, a Assembleia-Geral aprovou o regulamento das competências acrescidas em gestão de forma a introduzir rigor no acesso aos cargos de gestão e corrigir uma prática que vem sendo utilizada de nomeação sem o mínimo critério. Também aqui uma total salgalhada em termos institucionais e um total desconhecimento e desrespeito pela profissão, pelos enfermeiros e pelo seu regulador que actualmente representam!
Da tutela desconhece-se qualquer pensamento estratégico sobre a Enfermagem o que vem em linha das anteriores tutelas tão criticadas pela actual.
Academia e as Especialidades
Não nos esquecemos da Academia, que no seu egoísmo e visão estreita da profissão nunca quis discutir de forma aberta e convergente os melhores caminhos para a profissão. Organizaram-se para serem contra o MDP mas souberam aproveitar em forma de mestrado as possibilidades abertas pelo modelo de individualização das especialidades.
Numa altura em que se fala de mestrado integrado para acesso ao mercado de trabalho, com a respectiva formação para especialista já incorporada, não se lhes ouve um único pensamento ou visão estratégica. Andarão certamente muito preocupados com a sua equiparação a ensino universitário, mas esquecem-se que sem massa crítica, nomeadamente doutorados em Enfermagem, preferencialmente na parte clínica, serão sempre universitários de pés de barro. E não se fazem doutorados em “casinhas de bonecas”.
Conclusão
Em suma, há mais de 20 anos que o sistema de saúde e os portugueses estão privados, na sua generalidade, da adequada prestação de cuidados especializados de enfermagem, que tanto poderiam fazer pela eficiência do sistema no seu todo. Algo que, curiosamente, toda a gente diz defender batendo estoicamente no peito. Mas para a qual só conseguem encontrar soluções fora da Enfermagem. Um dia, isto tinha de estourar. E como não temos dirigentes e representantes da profissão à altura, tinha de estourar da forma que normalmente ocorre em sistemas podres. Pelo movimento popular.
P.S.:
Olhem para as sinergias institucionais que acontecem por esse país fora entre diferentes universidades e percebam porque é que estão condenados a formar auxiliares de acção médica (de gerontologia e outras áreas) com cursos de 2 anos de nível superior! Os cursos de auxiliar de ação médica são de nível 4, ou seja equivalentes ao secundário e são de 3 anos.