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Dos Direitos Humanos «à la carte»

Relativismo

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi elaborada por um conjunto de personalidades excepcionais oriundas das mais diversas partes do mundo, como, entre outros, John Peters Humphrey (Canadá), Rene Cassin (França), P. C. Chang (China), Charles Malik (Líbano) e Eleanor Roosevelt (Estados Unidos). Foi aprovada no final da Segunda Guerra Mundial, em 1948, pela Organização das Nações Unidas, com 48 votos a favor, nenhum contra e oito abstenções (estas, sintomaticamente, pelos países do bloco soviético — Bielorrússia, Checoslováquia, Polónia, Ucrânia, União Soviética e Jugoslávia –, bem como pela África do Sul e pela Arábia Saudita).

O Artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos é do seguinte teor: «Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras».

Curiosamente, no Artigo 40.º da Constituição da República de Angola (que entretanto deixou cair o «Popular»), lê-se: «Todos têm o direito de exprimir, divulgar e compartilhar livremente os seus pensamentos, as suas ideias e opiniões, pela palavra, imagem ou qualquer outro meio, bem como o direito e a liberdade de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações. O exercício dos direitos e liberdades constantes do número anterior não pode ser impedido nem limitado por qualquer tipo ou forma de censura.»

Vem tudo isto a propósito, obviamente, da desproporcionada condenação, esta semana, de 17 jovens activistas angolanos, entre os quais um cidadão português (Luaty Beirão tem dupla nacionalidade, portuguesa e angolana), por delito de opinião contra o regime vigente no seu país, liderado pelo presidente José Eduardo dos Santos, o milionário e todo-poderoso soba dos sobas que não abre mão do poder há 37 anos consecutivos.

Aquela condenação é não só um atentado à liberdade de expressão, é um atentado à liberdade tout court. É apenas mais um no longo rol de atropelos aos Direitos Humanos pelo regime angolano, de que a comunicação social internacionalmente se tem feito eco. Estamos a falar de um país com riquezas naturais extraordinárias, mas que é inacreditavelmente considerado um dos menos desenvolvidos do planeta, pela Organização das Nações Unidas (ONU), e um dos mais corruptos do mundo pela Transparência Internacional.

Não deixa contudo de ser curioso que Angola tenha sido eleita em 2014, pela segunda vez, membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com 190 votos a favor, num total de 193.

Assim como não deixa de ser curioso que José Eduardo dos Santos tenha sido por duas vezes distinguido por Mário Soares com as mais elevadas Ordens Honoríficas da República Portuguesa: o Grande-Colar da Ordem do Infante D. Henrique (1988), que se destina a «distinguir quem houver prestado serviços relevantes a Portugal, no País e no estrangeiro, assim como serviços na expansão da cultura portuguesa ou para conhecimento de Portugal, da sua História e dos seus valores», e o Grande-Colar da Ordem Militar de Sant´Iago da Espada (1996), que é concedido por «mérito literário, científico e artístico»!

Ora a tremenda hipocrisia que ressuma da Constituição angolana, daquelas eleições na ONU ou destas distinções pela República Portuguesa é exactamente a mesma que sobreleva dos votos do PCP, do PSD e do CDS contra a proposta de reprovação, apresentada pelos deputados das bancadas do PS e do BE, da dura sentença que condenou os supramencionados jovens activistas angolanos.

É óbvio que o PCP continua igual a si mesmo, protegendo o regime de um dos seus pupilos dilectos e mais ricos. José Eduardo dos Santos, que se formou na ex-União Soviética (sintomaticamente) em Engenharia de Petróleos com uma bolsa da URSS (os soviéticos ponderaram sempre muito bem as suas apostas políticas). Foi também na ex-União Soviética, onde permaneceu durante sete anos, que o actual presidente de Angola tirou um curso militar de Telecomunicações. A sua fidelidade ao bloco soviético está historicamente muito bem documentada: José Eduardo dos Santos era presença assídua, por exemplo, em manifestações públicas dos regimes comunistas da ex-RDA, da Cuba de Fidel Castro, da China de Hu Jintao e da Venezuela de Hugo Chávez.

Já os votos do PSD e o CDS contra a incontornável proposta do PS e do BE mostram à saciedade que os actuais líderes destes dois partidos não hesitam em pôr de parte os Direitos Humanos (que subjazem igualmente aos valores em que assentam a Social-Democracia e a Democracia Cristã que dizem perfilhar) em nome de um pragmatismo político hipócrita, norteado apenas por interesses financeiros, de que certamente muitos daqueles que os apoiam beneficiam.

Como se os Direitos Humanos, tal como foram definidos na Declaração Universal, fossem negociáveis ou passíveis de ser interpretados «à la carte», ao sabor de uma Realpolitik cada vez mais hipócrita e orientada apenas por interesses empresariais mais ou menos espúrios! Como é possível que ainda haja quem não perceba (ou finja que não percebe) que os Direitos Humanos são absolutamente inegociáveis e que não poderão nunca vergar-se perante qualquer modelo cultural ou político?

Assente em princípios humanistas universalmente aceites, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada por mais de 50 Estados soberanos de todas as partes do mundo, não tem um valor relativo ou subjectivo. Trata-se de um documento referencial para a paz no mundo, para a promoção do respeito universal, da observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

Não, meus senhores, atropelos à Dignidade e aos Direitos Humanos num país não justificam, não desculpam, nem branqueiam nunca outros atropelos do mesmo calibre, hoje ou amanhã, em qualquer outro Estado! Diga-se em abono da verdade que é este relativismo daltónico e acéfalo, muitas vezes movido por interesses financeiros não declarados (mas à vista e todos), que está na génese do capitalismo selvagem, da falsidade e da hipocrisia que têm vindo perigosamente a minar os valores humanistas em que assenta a cultura ocidental. A abolição da escravatura, o reconhecimento dos direitos das mulheres, a condenação e a luta contra a discriminação racial constituem manifestos progressos civilizacionais, impulsionados pelos valores humanistas que emergiram da Antiguidade greco-latina, do Cristianismo e do Iluminismo, e dos quais a Declaração Universal dos Direitos Humanos se faz eco de forma magistral e intemporal.

Quem não for capaz de compreender (ou não quiser compreender) a importância de não dar tréguas à luta pelo cumprimento dos Direitos Humanos, cedendo ao pragmatismo sem ética da Realpolitik, não está manifestamente à altura de servir a pólis. A História recente da Europa é inclusivamente pródiga em exemplos que demonstram bem as consequências trágicas de interpretações relativistas e hipócritas dos Direitos Humanos.

Esta gente manhosa, adepta do relativismo dos valores e da política pragmática da Realpolitik, jamais compreenderá o verdadeiro sentido da vida, jamais compreenderá a importância da entrega abnegada à luta pelo bem, jamais compreenderá o que queria dizer Francisco Sá Carneiro, quando afirmava que «política sem convicção é uma chatice, mas sem ética é uma vergonha», jamais compreenderá que «o sonho comanda a vida»…  Enfim, jamais será capaz de sonhar.

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