Há muito tenho escutado que a doença do século chama-se depressão, nossa conhecida de longa data. Hoje tomamos café juntos. Depressão não é a maior, mas é a que mais assusta. Ansiedade é o maior problema deste século e nos espreita a todos. Da distorção na percepção humana a problemas de alergia, respiratórios, gástricos, cardio-circulatórios, psiquiátricos, psicológicos, sexuais, perda de consciência, identidade, apatia, inapetência, falta de vontade, inadaptação ao mundo (tema que pretendo explorar neste ensaio) e insónia.
Cá estamos a esperar, no capitalismo do mundo, pós-leilão de almas que o sofismo ou a retórica nos tragam a redenção do não feito. E tudo tem início na ideia dissolvida em uma prateleira de shopping center, de uma teoria de desejo. O marketing acirrado feito desde meados da década de 1980 até os dias atuais deu cabo: foram 22 tiros cabeça e no peito, no postulado de Freud, assassinada a teoria do desejo. A propaganda e a publicidade, o mercado, desejam por você. A atualidade mais próxima da ideia de instinto de poder de Adler vivencia a socialização, o senso de pertencimento como base do processo social. Mas o que o mercado ou os colegas de espera vão solicitar? Qual a nova pós-moda? O materialismo deu fruto. Quem vir a ser? Desapontamento, Weber?
A epidemia da ansiedade evidencia a neurose, a paralisação, a apatia, o nada, o não dito, a fantasia de um ser humano zumbi que vegeta, patina e que tem de pedir licença para existir, gargalhar, que vendeu sua alma ao diabo ou a trocou por um dízimo de igreja, pagando aluguel de lote no céu ou leiloando algum prazer exótico com uma dominadora maneta. Tudo com preço pré-estabelecido em catálogo, com várias curtidas, atestando a distância de sua alma do desejo, de sua identidade. Somos uma sociedade voraz, à deriva, sem bússola, vento ou norte. A identidade tão propalada é discurso, virou mercado, fantasia. Vários casos que tenho atendido na neurose pós-moderna como analista e psicólogo clínico, e vários casos de minha equipe de outros colegas para os quais dou supervisão clínica, têm esta característica: a da vida sem eira, beira, sem graça, do “que estou fazendo aqui mesmo?”, o desajuste, a negação, muita crítica e apatia, nada serve, nada satisfaz e o melhor talvez venha amanhã. Redentora Ritalina, salve as almas que se perderam da simplicidade da vida!
Atendi há alguns anos um jovem de 30 anos que vivia com os pais, sem trabalho, estudo, bonzinho, modesto, vegetando. Computador, TV, vídeo game sala e quarto. Não dava trabalho ser de tecnologia, enjaulado, sem expressão, tímido, introvertido, monossilábico. Sobrenome: desespero. Quem era identidade um problema Microsoft ou Apple. Será que um dia foi? Um turbador crónico da existência, sempre no talvez, no nada, habitante do vazio, cuja emoção se resumia a uma série nova de TV. Raiva extrema por hora contida e depois descarregada em tiros e batalhas. Fantasia de ser herói em vídeo game? Muita adrenalina, raro movimento, ginástica de dedo e pizza. 30 anos, apático, sem amigos reais, enjaulado, bonzinho. Dois anos de terapia, com o pai, mãe, filho para quebrar o ciclo de superproteção e o retirar da jaula para a vida e dar trabalho aos pais, aprender a socializar, sair, ir a festas, conseguir o primeiro emprego, aprender a acordar cedo e a ganhar bronca do chefe, aprender que existe vida para além da tecnologia ou para além do horizonte de seu quarto.
Apatia é o efeito colateral do mercado de consumo, do materialismo, cerne da ansiedade que nos assola, falta crónica de sentido de vida, individuação (C. G. Jung), coisa que não se vende em prateleiras ou cursos, nem está à mesa com vinho e alheiras. Está no canto da alma guardado na gaveta, no olhar atrás da lente escura, na gargalhada na festa chata, na flatulência da dama da coluna social. A humanidade perdida na vitrine da loja. Qual o seu desejo? Quem é você? Qual o sentido de sua vida? Decifra-me ou devoro-te!