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Faria «delete»(?!?) à sua virtude humana de perdoar?

delete

As redes sociais foram tomadas de assalto. Adoramos estar online. Confessamos tudo, partilhamos tudo, expomo-nos como nunca nestes espaços públicos digitais. Despidos de preconceitos e munidos de um teclado, usamos as redes sociais como a Ágora grega da modernidade. Sobre tudo se fala, sobre tudo se especula, tudo se vende, tudo se compra.

Em cascata, ofendemo-nos, sentimos revolta, protestamos, inquietamo-nos com, punimos qualquer coisa e qualquer um. De igual forma, entregamos a nossa privacidade (no todo ou em parte) sem grande inquietação no nosso mural. E tudo isto apenas por duas grandes ordens de razão: por tudo e por nada.

Sem dissertarmos de forma muito intensa, procurando sermos objectivos quanto possível, gostaríamos de deixar um registo fresco e de alerta, sucinto q.b.. Neste conspecto gostaria de chamar a atenção para duas notas relevantes – subjectivamente falando – uma de Andrew Keen outra de Viktor Mayer-Schonberger, envolvendo as dinâmicas das redes sociais e ora os perigos ora as potencialidades que estas encerram e que, mais das vezes, negligenciamos de forma ostensiva, descurando a exposição a que nos damos.

Assim, começando por Andrew Keen, que em «Digital Vertigo: How today’s online social revolution is dividing, diminishing and disorienting us», concretiza dois apontamentos paradoxais:

1) se por um lado recorda que, essa tão insuspeita personalidade mundial, Nelson Mandela não era uma celebridade das redes sociais da moda;

2) por outro lado, e a propósito do também chamado de «Petróleo do século 21» – i.e., os dados pessoais digitais – certeiramente remata: «(…)a informação é o petróleo do século 21. Cada vez que colocamos informações pessoais nas redes sociais, alguém acaba por lucrar com esse facto.»

De facto, «(…)no cerne das redes sociais está o intercâmbio de informações pessoais. Os utilizadores ficam felizes por revelarem detalhes íntimos das suas vidas pessoais, fornecendo informações precisas, compartilhando fotografias e vivenciando o fetichismo e o exibicionismo de uma autêntica sociedade confessional. Formam-se, assim, gigantescos bancos de dados de carácter pessoal ao serviço de entidades de carácter privado, com prementes interesses económicos”», sejam eles para efeitos de qualquer tipo de marketing, sejam para efeitos de sondagens políticas, sejam para qualquer outro tipo de produto transacionável. E aqui, desorientados e divididos, nem nos apercebemos que o ser humano tornou-se “um produto”.

Ora, porque cedemos à tentação confessional de socializarmos em rede, e porque nem sequer quantificamos esse resultado final de que cada vez que nos apresentamos ao mundo como “um produtotransacionável, por outro lado, e atento o estado da arte, a visão trazida por Viktor Mayer-Schonberger, em «Delete: the virtue of forgetting in the digital age», desassossega-nos.

Com propriedade, Mayer-Schonberger afirma que «a memória digital nega-nos a capacidade tão humana de perdoar». A este propósito reporta um episódio paradigmático, sugestivo. Algo deste género envolvendo dois amigos, John e Jane. Estes, após terem tropeçado por acaso um no outro numa qualquer rede social, decidem voltar a encontrar-se (fisicamente). Após esse acaso virtual, os dois amigos decidem rever-se no café deles, de outrora. Como a Jane não se recorda exactamente da localização do dito café, e sem querer admiti-lo perante John, decide procurar nos emails trocados no passado com John esperançada de que, em algum deles, encontrará a localização pretendida. Enquanto vasculha o seu correio electrónico, acidentalmente depara com um deles, onde a conversa, entre ambos, terá sido bem azeda. Nesse mesmo instante, invadem-na velhos ressentimentos esquecidos. Ao invés de perdoar e esquecer como humanamente já o tinha feito, esta «memória digital» suplanta aquela felicidade inicial do reencontro. Ante o renascer daquele ressentimento – esquecido com o tempo – a «repulsa digital» acaba por a dominar, levando-a a faltar ao reencontro (físico) marcado. (Quantos de nós já tiveram uma experiência em tudo semelhante?)

As visões de ambos os autores, não sendo cataclíticas, têm o condão de nos manter alerta. De facto, a adição causada pela simplicidade das novas tecnologias colocam-nos num ponto tal que, muito do que hoje fizermos (ou omitirmos, até pela facilidade do ócio que esta nos intui) terá influência directa no legado que deixaremos. O futuro será sempre o resultado lógico das acções (ou omissões) do nosso passado e do nosso presente.

Entre uma revolução industrial 4.0, inovações tecnológicas, web semântica e inteligência artificial, se por um lado, a atitude confessional e voyeurista da pessoa humana se assume como corolário, muito apetecível para organizações, capaz de a transformar em “produto”; por outro lado, a «algoritmização» das nossas emoções afasta-nos de um ideal de pessoa humana, aproximando-nos, pelo contrário, de um centauro de modernidade, «híbrido», metade homem, metade máquina.

Assim, e porque o passar do tempo não pára, tecnológica e juridicamente, será legítimo exigirmos que, «depois da asneira feita», por exemplo, o Estado seja guardião da nossa identidade digital quando, ab initio, somos os primeiros a abdicar dela? E como poderemos efectivar algum tipo de controlo sobre a nossa pegada digital, no todo ou em parte, quando nem tampouco despertamos para a existência desta? Onde cabem o direito ao esquecimento ou o direito a ser deixado em paz na nossa modernidade? E na futura? E no que concerne às emoções humanas? Serão estas – por exemplo, quer as emoções que nos permitem tomar de assalto as redes sociais, quer aquelas que digitalmente controladas nos fazem renascer ódios esquecidos e esquecer o nosso lado mais humano – , características tão inatas, tão nossas, objecto de reformatação digital no futuro? Estaremos capacitados e predispostos a compreender tal transpersonalização digital?

Perante a inevitabilidade d(o)«a internet nunca esquece», a possibilidade pungente actual de construirmos uma sociedade em constante expiação e cada vez mais impiedosa – na qual, por exemplo, constante e facilmente confrontaremos factos do nosso passado com o presente – não nos deveria fazer parar para reflectir? Será possível contraditar essa inevitabilidade encontrando formas de preservação, desde logo, da nossa capacidade humana de esquecer?

Até porque, em última instância, só ajudando-nos a esquecer, nos ajudaremos a perdoar. E como perdoar é algo tão humano, caro leitor, estaria disposto no futuro a fazer «delete» a esta característica inata sua?

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