Um debate sério debate sobre a Educação que queremos nunca esteve em cima da mesa nestes 42 anos de democracia. Nem esteve, nem está. E, mais uma vez, com mais uma pressão inadmissível a propósito dos Contratos de Associação, estamos a debater de forma distorcida e com muita gente a defender interesses – particulares ou de pequenos grupos – sem uma perspetiva nacional. Acresce que, no processo, muita gente está a faltar à verdade e a utilizar os meios de que dispõe para lançar cortinas de fumo que impeçam que os outros tenham acesso à informação, de forma transparente, e se possa fazer um debate sereno, consciente e público.
Na verdade, para garantir a todos os cidadãos o direito de acesso à educação e à cultura e a liberdade de ensinar e de aprender, o Estado promove uma rede pública de educação e ensino, ao mesmo tempo que reconhece uma rede privada. Reconhecendo dificuldades nessa missão, o Estado legislou no sentido de ter mecanismos para suprir dificuldades na cobertura de todo o país. É assim que entram os vários tipos de contratos previstos na lei. O que está a gerar confusão é um tipo particular de contratos – os Contratos de Associação – que apoiam somente 3% do Ensino Privado.
Nº de Escolas da rede privada (ver gráfico abaixo): 2628 (Continente) / 2773 (Portugal)
Nº de Escolas com Contrato de Associação: 80 (3% do total)
Portanto, cerca de 97% das Escolas Privadas não têm Contrato de Associação, pois o Estado só contratou com 3% delas justamente nos locais onde não havia suficiente cobertura da rede pública. No entanto, nos media e para certos partidos e pessoas esses 3% são “TODO o Ensino Particular e Cooperativo” e, aparentemente, é essa a única forma de apoio do Estado à rede de Ensino Particular e Cooperativo.
Há aqui, digo eu, um problema de ILITERACIA em Matemática. Ou então, uma ação concertada para desinformar.
E porquê? Ninguém quer saber como SOBREVIVEM as outras 97% das escolas privadas? Não se preocupam com a “liberdade de opção” que representam para os pais dos respetivos alunos? Ou só interessam aquelas que estão, de alguma forma, dependentes do Estado? E se só interessam essas podem-me dizer exatamente por quê? Ninguém se incomoda com a concorrência (desleal?) que fazem os 3% de escolas com contratos de associação às outras 97% que não usufruem desse benefício?
Talvez seja pelo benefício financeiro? Será?
Qual é esse benefício? 80500 euros, por extenso, oitenta mil e quinhentos euros por turma. Ou seja, uma escola com 10 turmas recebe oitocentos e cinco mil euros por ano. Com 20 turmas, 1 milhão seiscentos e dez mil euros. Existem escolas com mais de 30 turmas.
🙂
Existem outros apoios (alguns dirigidos especificamente às famílias e à liberdade de escolha), mas, incompreensivelmente, atingem menos alunos, apesar de serem distribuídas por mais escolas. Na verdade, o gráfico acima mostra que existem outras formas de apoio à rede privada de ensino. A saber:
- Contratos simples de apoio à família – são apoiadas 372 escolas num total de 22130 alunos – garantem o direito de opção educativa das famílias, permitindo a frequência de escolas do ensino particular e cooperativo a alunos do ensino básico e do ensino secundário não abrangidos por outros contratos;
- Contratos de desenvolvimento de apoio à família – apoiam 463 escolas num total de 7390 alunos – orientados para a promoção da educação pré-escolar;
- Contratos de associação – são apoiadas 80 escolas num total de 45633 alunos – decorrem de um concurso público e permitem a frequência do ensino privado a todas as crianças e jovens em idade escolar, em condições idênticas às das escolas públicas, ficando os estabelecimentos de ensino privado obrigados a aceitar a matrícula de todos os alunos até ao limite da sua lotação, seguindo as prioridades estabelecidas para as escolas públicas;
- Contratos de patrocínio – são apoiadas 67 escolas num total de 6782 alunos – destinados a estimular e apoiar o ensino em domínios não abrangidos, ou insuficientemente abrangidos, pela rede pública, a criação de cursos com planos próprios e a melhoria pedagógica. Estes contratos pretendem também promover a articulação entre o ensino regular e diferentes modalidades de ensino especializado, designadamente artístico, desportivo ou tecnológico, nomeadamente ao nível da gestão curricular e do modelo de funcionamento, tendo em vista a respetiva otimização;
- Contratos de cooperação– são apoiadas 123 escolas num total de 1401 alunos – com estabelecimentos de ensino que se dedicam à escolarização de alunos com necessidades educativas especiais decorrentes de deficiências graves ou completas que requerem respostas inexistentes nas escolas do ensino regular.
Nota Importante: o Estado apoia com os vários tipos de contratos 22130 + 7390 + 45633 + 6782 + 1401 = 83386 alunos do Ensino Particular e Cooperativo. Isso equivale a:
83386 * 100 / 331930 = 25,1% de todos os alunos matriculados no Ensino Particular e Cooperativo
Os Contratos de Associação não são uma forma de permitir liberdade de opção, etc., porque se fossem teriam de abranger mais escolas do ensino privado. No entanto, a esmagadora maioria (97%) dessas escolas não dispõem desse apoio do Estado. Os contratos de associação são mecanismos do Estado para suprir dificuldades na rede pública. São mecanismos de subcontratação, com regulamentação própria. E como todos esses mecanismos temporários e muito localizados, devem cessar quando a necessidade que lhe deu origem também cessar. É tão simples quanto isso. Acresce que atuar dessa forma não dá direito a discordar, ou não, porque num Estado de direito nós não podemos discordar do facto de se cumprir a lei. Se não gostamos da forma como algo está organizado e definido em lei, teremos contribuir para a alterar. É assim mesmo. São também contratos muito apetecíveis, dado o valor por turma envolvido (80500 euros) e é essa a razão próxima de tanta agitação: muitas escolas não são viáveis sem este apoio substancial do Estado. Aliás, a prova disso é que estas escolas andam a dizer que terão de fechar se o contrato terminar. Quer dizer duas coisas, não são viáveis sem o apoio do Estado e o acordo é rentável.
Numa entrevista recente à TVI, a Secretária de Estado da Educação (Alexandra Leitão) foi muito clara sobre o que estava em causa e sobre a obrigação do Estado. Vale a pena ver e ouvir. Alexandra Leitão é uma mulher superiormente inteligente, muito bem preparada e um dos melhores governantes desta área em dezenas de anos.
No caso da Educação vivemos ao sabor de interesses: privados e de fortíssimos grupos de pressão, sindicais, etc. Mas na verdade o país nunca debateu o que queria para a Educação. Distrai-se agora a lançar cortinas de fumo: uns alegam todo o tipo de argumentos (muitos inaceitáveis e demagógicos, por nada terem a ver com o assunto em causa, atuando de forma a esconder a realidade) para defender Contratos de Associação mesmo quando eles não são necessários e, portanto, de acordo com a lei, deverem ser cancelados, outros não têm a abertura de espírito suficiente para perceber que num debate se deve entrar de mente aberta, colocando o foco no interesse nacional e reconhecendo que se há matéria que devia ser isenta ao dogma é a Educação. Eu gostava de ter esse debate, com os números em cima da mesa, com a realidade tal como ela é, e ponderar em conjunto, de forma livre, pública e partilhada, o que deve ser feito. No final, com consenso, as conclusões deveriam ser vertidas em forma de lei para que fossem cumpridas. Neste caso particular, a equipa ministerial está cheia de razão e vejo em muitos deles, na Secretária de Estado Alexandra Leitão em particular, a determinação, a inteligência e a capacidade de ver o essencial, o que não é nada comum. Têm de cumprir a lei, têm de analisar, caso-a-caso, a validade e necessidade dos Contratos em vigor, e têm de tomar decisões relativamente à gestão do dinheiro dos contribuintes. Também sei que muitos dos que se manifestam, colocados em barricadas distintas, não querem esse debate, não percebem que em democracia a informação séria e rigorosa é essencial para boas decisões, e também que a ponderação estratégica obriga a despir as vestes particulares, a circunstância pessoal, para ser capaz de olhar com clareza o horizonte. Outros percebem, mas jogam na desinformação para atingir os seus objetivos.
Finalmente, olho para o efeitos que as várias “paixões pela Educação” tiveram na Escola Pública e fico abismado. Pelo relatório “O Estado da Educação 2014“, publicado pelo CNE, Conselho Nacional de Educação em Outubro de 2015, ficamos a saber que entre 2005 e 2014:
1) a rede pública perdeu 47% das Escolas, isto é, quase metade: baixou drasticamente de 12.312 para 6.575.
2) a rede privada aumentou 9,7%: foram criadas 239 escolas privadas nesse período.
Se olharmos para o número de matriculados (gráfico abaixo) verificamos que a rede pública perdeu alunos, contraiu, e a rede privada cresceu em alunos, expandiu.
Nota Importante: os alunos matriculados no Ensino Particular e Cooperativo (331 930) correspondem a 24,1% dos alunos matriculados na rede pública (1 376 153). Ora a rede pública, que resulta de uma obrigação constitucional, tem sido reduzida em instalações e docentes por estar sobre-dimensionada, isto é, não ter a sua capacidade instalada aproveitada ao máximo. No entanto, a poupança resultante dessa reestruturação não é, aparentemente, usada na rede pública para que melhore a sua qualidade, mas em parte na rede privada para que faça concorrência ao público e piore a situação que conduziu à reestruturação. Isto deve fazer sentido para alguém, mas não é de certeza para quem está preocupado com os recursos do Estado e o dinheiro dos contribuintes.
Ou seja, a rede pública, por várias razões (procura, problemas demográficos nas várias regiões, sobre-dimensionamento, etc.) fez uma grande esforço de racionalização: perdeu alunos, instalações e docentes. Ao mesmo tempo, a rede privada expandiu, em alunos e em instalações. Não é propriamente um sistema em crise.
Do relatório do Tribunal de Contas de 2012 que tentou saber quanto custava um aluno na Escola Pública e na Escola Privada, ficamos a saber que apesar de tudo, da necessidade de reforma, da necessidade de motivação e de dotar as escolas públicas de mecanismos de gestão mais eficientes, a Escola Pública se comporta muito bem e consegue ser muito eficaz e melhor que a escola privada. Desse relatório, que pode como sempre ter várias leituras, resultam 3 notas que realço:
1. Custo médio de um aluno na escola pública:
2. Custo médio de um aluno na escola privada:
3. Recomendação sobre contratos de associação (página 16, alínea d)):
(a mesma recomendação que tinha sido feita pela Troika e que o anterior Governo ignorou)
É IMPORTANTE notar que na entrevista à TVI, a Secretária de Estado fala num custo por turma a rondar os 54 mil euros, em escolas com capacidade instalada e aproveitadas até ao máximo da sua capacidade. Esse parece-me um valor realista e uma forte razão para reavaliar, caso-a-caso, o que está a ser feito com o Ensino Particular e Cooperativo.
Vendo tudo isto, percebendo como a Escola Pública foi ao longo dos anos cumprindo o seu papel, o resultado é muito animador e um elogio aos professores e a um sistema que, apesar de tudo, funcionou com qualidade. Por isso, mexer-lhe tem de ser feito com cuidado e de forma muito ponderada. Andar ao sabor de grupos de pressão não é, de certeza, boa ideia. Sei que ao longo de todos estes anos existiu gente de muito fraca qualidade a decidir (dada a forma como são selecionados os políticos), mas também, surpreendentemente, gente muito capaz. Esta equipa ministerial da Educação tem mostrado capacidade de decisão, vontade, muita determinação e tem elementos de excecional qualidade: é o caso da Alexandra Leitão, como já referi. Ser claro, ser capaz de se concentrar no essencial é uma qualidade muito rara e acessível a muito poucos. Estar do lado deles é uma forma de permitir que nisto tudo ganhe o bom-senso.
J. Norberto Pires
Fontes (referenciadas ao longo do texto em links):
- Decreto Lei 152/2013, de 4 de Novembro;
- Portaria 172-A/2015 de 5 de Julho;
- Despacho do Secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar em 15 de Junho de 2015;
- Despacho Normativo 1H/2016 do Ministério da Educação de 14 de Abril;
- Relatório (auditoria) do Tribunal de Contas 2012;
- “O Estado da Educação 2014”, da CNE.