Pugnando por um Regulador nacional dos 3 C’s – Conteúdos; Comunicações; Concorrência
Confesso que, por natureza, tenho sempre uma certa dificuldade em aceitar, de imediato, algo como “verdade absoluta”. Mais ainda quando e se o(s) tema(s) gravitam sobre imposições deficientemente explicadas. Envolvendo afectações desvantajosas sobre todos e cada um de nós considerados, muito mais ainda.
O tema sobre o qual hoje irei dissertar um pouco, parte de uma série de interjeições e conclusões que a investigação jurídica e académica, elaboradas pela investigadora e Professora da Faculdade de Direito da Universidade Lisboa, Raquel Alexandra Brízida Castro – que baptizam o comentário desta semana – trouxeram a lume.
Assertivamente, e por imperativo de consciência, tenho de fazer um ponto de ordem inicial. Reduzir uma tese, uma investigação, a meia dúzia de segmentos frásicos, é um exercício… hercúleo. Manipulativo. E, inglório. Até porque, conseguindo-o, desviaremos sempre o foco do essencial. E o essencial, como em todo o Direito, nunca é, apenas e só, o resultado final. Pelo contrário. Todo o caminho que percorrermos para alcançar um determinado objectivo final, revela a mesmíssima importância que o tal resultado a que chegarmos. Ademais, a tarefa inicial poderá sempre revelar uma situação final mais desvantajosa do que a inicialmente considerada. Logo, o Direito é, assim como tudo na vida, um compasso de experimentações. E nesse vai-e-vem experimental, só o domínio da teoria poderá consolidar uma praxis mais vantajosa para todos. O Direito é isto mesmo: para as pessoas e pelas pessoas.
Escolhi um ponto de partida para esta recensão. O modelo regulatório do mercado da comunicação social em Portugal, projectado pelo princípio constitucional do Pluralismo. Apenas e só porque, sendo um princípio ordenador, estruturante, é, igual e por isso mesmo, um princípio desestabilizador.
Na verdade, o princípio constitucional do pluralismo mediático não sendo um valor absoluto constitucional a proteger, revela, apenas, naquela sua concepção e concretização jurídica de pluralismo de expressão, um princípio fundamental de todo o Estado de Direito Democrático. Este sim, de pungente protecção constitucional. Facilmente percebemos o juridiquês aqui implícito. Façamos a seguinte pergunta: de que serve garantir uma pluralidade de meios de comunicação social, se dela não resultar efetivamente o pluralismo de expressão?
Fácil, certo?
É aqui precisamente, nesta margem de actuação, bem cinzenta como veremos, deste princípio constitucional – com sobreposição actual desmesurada de entidades com capacidade (e tiques) reguladora – que a investigação vai desvendando as interjeições e conclusões mais ablativas. Daí que, antecipando o resultado final, a ideia da autora de edificação de um regulador dos 3 C’s – Conteúdos; Comunicações; Concorrência – fará todo o sentido.
Escalpelizando um pouco. De forma superficial, entendamo-nos.
No caso português, as entidades reguladoras, ERC, ANACOM e AdC, respectivamente, cumprem o seu dado desígnio regulatório, sectorial. Os mercados, aparentemente, sobre que – no essencial – se debruçam, parecem ser circuitos autónomos, fechados. Não são. Naturalmente. Muito mais ainda quando, pelo avanço tecnológico que nos surpreende diariamente, a fronteira entre distribuidor, produtor, transmissor de conteúdos, …, se esbate a cada dia que passa. Pensemos, para este exemplo, nos dois gigantes que operam em Portugal: MEO e NOS. Nos produtos que oferecem, distribuem, produzem…
Adiante. Deixar que o mercado possua o mecanismo suficiente, exacto, de pesos e contrapesos é um sonho. Pensar que uma actividade regulatória intensiva resolve o problema, outro. Mais regulação, melhor regulação? Menos regulação, melhor regulação? Existe solução?
Os temas são extenuantes. Mas, a abordagem que transmitimos, sobre este tema em particular, está pressuposta na visão da Constituição da comunicação sobre a qual a autora investigou. Como garantir que o mercado, quer as empresas, quer o consumidor, atinja um momento de satisfação máxima para cada interveniente, numa dinâmica de mercado satisfatória, sem que o pendor sobrecarregue o consumidor – tido como, por norma, o elemento mais fraco – logo necessitando de maior protecção constitucional?
Estaremos preparados para uma responsabilização – exigência, de facto – «Melhor regulação para regulação melhor?» As entidades reguladoras sectoriais compreendem e regulam o mercado, ou estão em (aparente ou real)captura por este?
Partamos de dois exemplos presentes nesta investigação. Redutores certamente, mas, acredito, sucintos o suficiente para percebermos um pouco o que está em causa.
A autora enumerou dois embates entre entidades reguladoras sectoriais diferentes para justificar a fusão das 3.
Vejamos o primeiro confronto. Até porque resvalou de imediato para o bolso do consumidor(i.e., cada um de nós). E, da forma semelhante, até do próprio Estado, após a ANACOM ter devolvido a caução inicial da PTC. Tudo se desenvolve em torno do primeiro dividendo digital, o qual, ficou(e ficará) para a nossa memória como “o-processo-TDT-mais-estúpido-da-Europa”(minha adjectivação).
A tensão gerada, ERC/ANACOM– com compressão evidente de direitos básicos dos consumidores – exponenciou-se através do Concurso Público da Televisão Digital Terrestre. Competindo ao (então) ICP – ANACOM a atribuição de direitos de utilização de frequências, referentes à componente paga da TDT, à ERC competia a atribuição de uma licença de operador de distribuição, nos termos da Lei da Televisão. Aconteceu que, uma vez ganho o concurso público, também relativo a cinco direitos de utilização de frequências diversas que o concretizavam, a PTC decidiu requerer a revogação desses títulos referentes à componente paga da TDT. Bem como à restituição da caução que havia pago.(Teria muitas considerações pessoais a tecer sobre esta «jogada», mas reservo-me ao direito de não o fazer. Pelo menos aqui, e agora.).
O que aconteceu? Bem, através de expediente oficioso remetido em simultâneo, às duas entidades Reguladoras, a PTC obteve respostas contraditórias. Se a ANACOM prontamente anuiu à pretensão da PTC(COMO??), a ERC declarou-a improcedente, afirmando a sua competência exclusiva de revogação dos títulos habilitadores correspondentes à sua área de intervenção sectorial, em conformidade com a interpretação que faz do interesse público.
Pior ainda ficamos quando verificamos que os efeitos jurídicos dessa decisão da ERC de não revogação da licença de operador de distribuição, não desapareceram. Aliás, neste conspecto, pergunta-se: Mas quem é atualmente o detentor de direitos sobre o espectro hertziano terrestre, afeto aos Muxes controvertidos? O Estado ou ainda o titular da licença de operador de distribuição? Pode o Estado reverter para o domínio público o espectro referente a esses Muxes, existindo uma licença afeta a esse espaço?
E avoluma. Em respeito pelo princípio da eficiência administrativa, não deveria a ANACOM ter atribuído esses direitos ao classificado no lugar subsequente no concurso público? Pode o Estado voltar a submeter a concurso público tais direitos, sem que se tenha recorrido ao classificado no lugar imediato? E neste caso, como deveria proceder atualmente a ERC, no que concerne à licença do operador de distribuição?
Alguém reparou nisso? Em abono da verdade, quer o investigador e Professor da UMinho, Sérgio Denicoli, quer a autora presente, sim. Ainda que sob perspectivas diferentes. Mas, o Estado repôs a veracidade jurídica vilipendiada por este concurso? Ainda não… Com a agravante de que as sobreditas consequências jurídicas perduram, pois se a ANACOM declarou procedente a pretensão da PTC, no concernente aos títulos da sua competência, em contrapartida, a licença atribuída pela ERC ainda não foi objeto de qualquer ato revogatório. Mau demais para ser verdade. Mas, é-o.
Obrigado Raquel Alexandra Brízida Castro, por este «abre-olhos». Até porque, tendo aí, a breve trecho, um novo momento de dividendo digital, será que o Estado percebeu a importância de observar regras elementares do Direito? A objectivação de fundos para os cofres do Estado, mesmo em momentos de capitais contingentes, é o único móbil regulatório? Até porque, olhando para o passado – recente – a generalidade de zonas penumbra e de consumidores sem acesso – após tentativas sucessivas de compra do «aparelho de tdt tal» – e nunca a «oferta diferenciada e variada com que nos seduziram» marcam de forma indelével “o-processo-TDT-mais-estúpido-da-Europa”. Venceu a subversão das regras jurídicas.
Mas se as tensões ERC/ANACOM não se resolvem, as tensões ERC/AdC, idem.
Tomemos os 2 exemplos, neste conspecto em particular, que a autora sufraga.
Na defesa e protecção do pluralismo de expressão, partamos para um primeiro exemplo. A designada “Operação Triângulo”, envolvendo as empresas CONTROLINVESTE MEDIA, SGPS, S.A.; ZON OPTIMUS, SGPS, S.A. e PORTUGAL TELECOM, SGPS, S.A.. Neste processo, a ERC, reiterando a sua competência para analisar os efeitos da operação notificada nos mercados relevantes de comunicação social, manifestou que não se opunha ao projeto de operação de concentração notificado, condicionando, todavia, essa não oposição, à reformulação das cláusulas originais de não concorrência, constantes do Acordo Parassocial – “apesar de a operação notificada em si mesma ser inócua no que se refere ao pluralismo e diversidade de conteúdos, o mesmo já não se pode dizer quanto aos seus termos concretos e, em particular, quanto aos efeitos que decorrem para o mercado do acordo parassocial confidencial que foi subscrito.”. O Parecer de oposição, negativo mas condicionado, emitido obstava à realização da operação projetada, enquanto a reformulação do Acordo Parassocial não fosse considerada satisfatória pela ERC. Escusado será sublinhar que esta contenda foi parar ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, Processo: 7/13.8YQST. Aqui, felizmente, o Tribunal, acolheu, no essencial a declaração de voto da vogal da ERC, Raquel Alexandra Brízida Castro, confirmando o parecer da ERC. Não obstante, esta “operação triângulo”, acabou por não se concretizar, por motivos diversos de índole empresarial. Venceu o pluralismo.
As entidades reguladoras aqui em confronto, assumiram decisões divergentes, infirmando ou confirmando a força jurídica de um princípio estruturante do estado de direito democrático, tendo, in casu, prevalecido a posição da ERC.
O segundo exemplo, sufocante, de forma incompreensível – ainda que variadas vezes alertada para o efeito – não sucedeu com a recente Operação de aquisição da PT pela ALTICE, em meados de 2015. Ultrapassou-se o parecer vinculativo obrigatório a emitir pela ERC, tendo sido concretizado um negócio, sem que a ERC se tenha pronunciado. Completamente à revelia da tutela constitucional do pluralismo, o mercado, aqui, continua a funcionar. Sem que, além da autora, alguém se importe. (Atrevo-me, por comparação, a dizer que é como ir a um café, pedir uma bica por necessitarmos de ingestão de cafeína, e, servindo-nos um descafeinado – por erro e num bico que tira vários cafés ao dia – acabamos por o tomar como café e sair de lá com uma sensação de satisfação. Pelo menos até percebermos a efemeridade daquele descafeinado.).
Valeu aqui a posição – única – da AdC, ainda que em fraude à Constituição. Perdeu o pluralismo.
Intrigante, certo?
Se não estudássemos, com afinco a teoria, neste momento assumiríamos – como, pelos vistos, temos aceitado isto de forma tão natural – esta práxis.
Pois bem, e finalizando. Estes vai-e-vem perniciosos, delongas, expediente diverso em trânsito, posições irredutíveis de Reguladores, audição de regulados, processos multi-feixe e de implicações diversas, revelam uma regulação – como a actual – obtusa, fechada sobre si mesma, e com muito pouca correspondência entre sectores – ainda que estes fácil e diariamente se toquem. Confirma-se por isso a posição assumida pela autora. Ou seja, a necessidade urgente da instituição de um Regulador dos 3 C’s – Conteúdos; Comunicações; Concorrência. Só uma melhor compreensão de todas as variáveis envolvidas permitirá obter o máximo de ganhos regulatórios possível. Só uma «melhor regulação para uma regulação melhor» permitirá mitigar os efeitos nefastos das ineficiências do mercado. E, só assim, todos ganharemos com esta ousadia académica.
Obrigado, novamente, Raquel Alexandra Brízida Castro, por este «abre-olhos».
Pugne-se por esse Regulador nacional dos 3 C’s – Conteúdos; Comunicações; Concorrência.
Nota: foto de capa da tese da autora, com direitos reservados pela livraria Almedina.