O assunto que hoje abordamos está na ordem dos dias, que se vivem por terras brasileiras. Copiosa tinta corre por esse mundo, e em especial, claro está, no Brasil, onde se assiste a uma relevante e perigosa convulsão social, motivada pela maior crise política recente e impulsionada quer por apoiantes de Dilma Rousseff e Lula da Silva, quer por opositores ao regime.
Contextualizemos, em síntese
Desde há cerca de dois anos, o Ministério Público e a Polícia Federal brasileiros investigam indícios de práticas criminosas – numa operação denominada “Lava Jato” – relacionadas com a empresa estatal Petróleo Brasileiro, SA (Petrobras) e eventualmente cometidas por diretores daquela empresa, próximos das elites partidárias do PT (Partido dos Trabalhadores), PP (Partido Progressista) e PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), os dois últimos na base de apoio ao Governo de Dilma. Em suma, existem suspeitas que aqueles elementos terão cometido atos de corrupção, através do favorecimento a determinadas empresas do ramo (nomeadamente a Odebrecht) na adjudicação de contratos de empreitada.
Em março de 2014 foi realizada uma detenção – de Paulo Roberto Costa, ex-diretor de abastecimento da Petrobras, tendo ainda, alegadamente, sido apreendidas provas bastantes do cometimento dos crimes, por banda daquele e de outros suspeitos.
Em 2015, foi constituída uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), junto da Câmara dos Deputados, composta por representantes de todos os Estados e do Distrito Federal. Esta CPI teve como objetivo “investigar a prática de atos ilícitos e irregulares no âmbito da empresa Petrobras, entre os anos de 2005 e 2015, relacionados a superfacturamento e gestão temerária na construção de refinarias no Brasil (…)”. Foram apresentados milhares de requerimentos e realizadas centenas de audições e acareações, tendo aquela Comissão culminado em Outubro de 2015 com a apresentação de um relatório de 757 páginas. Das conclusões daquele documento, ressaltam a “confissão” de um tal de Pedro Barusco, que afirmou receber “propina” desde 1997, ou as inúmeras “delações premiadas”, as quais contudo, não constituem por si só, meio de prova. São ainda aconselhados aprimoramentos legislativos, em dimensões como governança, gestão de riscos, controles internos e combate à corrupção. E é tudo.
Em março deste ano, a Polícia Federal e os Procuradores responsáveis pela investigação, consideraram a existência de indícios criminais contra o ex-Presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, responsável pela decisão final sobre as nomeações dos diretores da Petrobras, e alegadamente um dos principais beneficiários dos vários delitos cometidos. Consideram que terá aquele enriquecido ilicitamente (no Brasil este ato não é ainda tipificado no Código Penal, consubstanciando apenas um ilícito civil e administrativo, previsto na Lei de Improbidade Administrativa (L. nº 8429/1992), embora tenha já sido apresentado o Projeto de Lei do Senado – PLS nº 35/2015, no sentido da criminalização daquela conduta).
Face àquela convicção, resolveu o Ministério Público do Estado de São Paulo pedir a prisão preventiva de Lula da Silva (e de outras seis pessoas), acusando-o de lavagem de dinheiro – na modalidade de ocultação de património – e falsidade ideológica, com base em suspeitas sobre a verdadeira propriedade de um apartamento triplex, em Guarajá (SP), o qual estaria reservado, pela construtora OAS, a Lula da Silva e família.
E agora Dilma. Dilma no meio deste cenário. Dilma, a Presidenta:
Argumentos a favor e contra o impeachment da Presidenta. Mas afinal que figura jurídica é esta, desconhecida do ordenamento jurídico de inspiração romano-germânica? Trata-se de um processo que envolve a cassação do mandato de um político do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos), tornando-o inelegível pelo período de oito anos. Aconteceu em 1992, com Fernando Collor. É uma decisão política dentro do universo jurídico, como afirma Vânia Aieta, especialista brasileira em direito constitucional.
De acordo com os pressupostos vertidos na Lei nº 1070 de 10 de abril de 1950 – a Constituição da República Federal não se refere expressamente a este processo, embora o artigo 85º preveja os crimes de responsabilidade, o pedido de impeachment – teoricamente passível de ser apresentado por qualquer cidadão, ao Congresso Nacional – deve controverter provas fidedignas do cometimento, pelo político, de um crime comum, crime de responsabilidade ou atos que ponham em causa a segurança do país. Obtidos dois terços dos 513 deputados da Câmara dos Deputados, o processo segue para julgamento, no Senado (se tiver a adesão de dois terços dos 81 membros), presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal e durará 180 dias, período durante o qual a Presidente será afastada do cargo, assumindo funções o seu Vice. Caso o julgamento não seja concluído nesse prazo, a Presidente voltará às suas funções.
Bom, a Presidenta Dilma tem na sua base política aliada, 304 Deputados e 52 Senadores. Bastará fazer as contas, para se encontrar o grau de probabilidade de verificação.
Num redentor ato de salvação do seu mentor, bem como do seu próprio governo, Dilma ofereceu o cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil a Lula, conferindo-lhe por essa via, maior proteção jurídica relativamente às investigações judiciais, que contra ele decorrem. Investido nas novas funções executivas, passaria a usufruir de foro privilegiado e seria julgado pelo Supremo Tribunal Federal – cujos ministros e presidente foram, na sua maioria, indicados pelos governos de Lula e Dilma – mais uma vez, é tudo uma questão de se fazerem contas – sendo entretanto a investigação dirigida pelo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot. Primeiro objetivo atingido: o afastamento da condução do processo, do polémico juiz Sérgio Moro.
A jurisprudência brasileira, porém, divide-se, quanto à possibilidade, ou não, de prisão preventiva de Lula da Silva, após a tomada de posse (e respetiva publicação no Diário Oficial da União), podendo esta ser considerada juridicamente nula por “fraude processual” ou “abuso de direito”.
Notícias recentes dão entretanto conta, que em duas situações foram providas ações populares, por cometimento de crime de responsabilidade, contra o Governo Federal, levando à suspensão do ato de nomeação de Lula da Silva.
Bom, nesta novela caricata aos olhos de um europeu, mas eventualmente previsível para um latino-americano, a verdade é que em causa está a saúde da democracia brasileira.
Desde a Constituição Imperial de 1824, até à atual Constituição de 1988, que se encontra previsto, formalmente, o modelo clássico de separação de poderes, tal como preconizado por Charles-Louis de Secondat ou Montesquieu, no século XVIII, embora enviesado pelo disposto no artigo 62º, da Constituição Federal de 88, relativo às “medidas provisórias” – regime herdeiro do provvedimento provvisorio italiano, vulgarmente conhecido por decreto-legge, disciplinado no artº. 77º da Constituição italiana de 1947 – o qual claramente constitui uma invasão do poder legislativo pelo poder executivo.
A afirmação de um Estado de Direito pressupõe, portanto, uma inequívoca distinção entre direito e poder e uma subordinação do poder ao direito. Como defende Gomes Canotilho, em 1999, um Estado de Direito não será aquele que decreta leis arbitrárias, cruéis ou desumanas; não é um Estado em que o direito se identifica com as razões de Estado, impostas e estabelecidas pelos detentores do poder e não é, seguramente, um Estado pautado por radical injustiça na formulação e aplicação do direito e por acentuada desigualdade nas relações da vida material.
Um dos mais importantes desafios, atualmente lançados ao Estado de Direito democrático, previsto no art.º 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, é a superação da cultura patrimonialista, voltada para práticas de gestão pública personalistas.
Importa assim evitar o surgimento, ou debelar de imediato, personagens do tipo neo-caudilhista, nas frágeis democracias sul-americanas, as quais contribuem para o enfezamento das aspirações dignas de um povo. A par, estabelecer ordem equitativa nas relações sociais, dirimindo as indesejáveis classes de cidadãos, na prossecução real do respeito pela condição humana, revelam-se os caminhos a trilhar, por uma sociedade ética e politicamente efetiva.
O riacho do Ipiranga corre em São Paulo. Impor-se-á ao Brasil voltar a gritar?
Recordemos, à laia de epílogo, Caetano Veloso, a propósito, na melodia da canção “Da maior importância” – Mas você não teve pique e agora/ Não sou eu quem vai/ Lhe dizer que fique.