Alice caiu no buraco… mas foi uma queda longa, de 2 semanas.
Durante 2 semanas o país esteve na eminência de se tornar uma ditadura moral, onde quem não se vacinasse seria enviado para um iceberg de 10 por 10 em pleno Alasca.
Tudo por causa de um bebé de 13 meses que infectou uma jovem de 17 anos que acabaria por falecer. Ora, a primeira toma da vacina é aos 12 meses e aparentemente o bebé não estaria em condições para receber a vacina quando tinha 12 meses. Portanto, um mês de dilatação no tempo, justificada. Tudo perfeitamente normal. Já a jovem, não teria sido vacinada na sequência da recomendação de um médico que, face à reacção anafiláctica da jovem perante outra vacina, considerou que não seria adequado vaciná-la. Tudo perfeitamente compreensível à luz do senso comum.
Não obstante toda esta normalidade, conseguiu-se “injectar” na sociedade portuguesa uma discussão sobre a obrigatoriedade da vacinação mais profundo que o tido relativamente às reformas impostas pela União Europeia.
A quem interessa esta discussão, para criar tal nível de spinning com alicerces tão frágeis?
Estamos a falar de 21 casos de sarampo detectados até agora em 2017. Em 2015 tivemos 468 de gonorreia, a comparar com os 271 de 2016; 782 de sífilis, a comparar com os 525 até Agosto de 2016; e 239 de tosse convulsa, a comparar com os 420 até Agosto de 2016. Tudo doenças de declaração obrigatória… E tivemos uma prevalência de quedas em unidades de cuidados continuados de 11,6% em 2015 e 12,8% em 2016, bem como uma incidência de úlceras de pressão de 7,16% em 2015 e de 5,14% em 2016. Tudo fenómenos preveníveis com uma adequada dotação de recursos, dispositivos de segurança e bom material de penso. E não se vê um alarido descomunal por causa de nenhuma destas situações.
Haverá aqui um interesse comercial, nomeadamente da indústria farmacêutica, que viu numa situação erradamente empolada (já lá vamos ao porquê), a oportunidade para consolidar a necessidade dos seus produtos junto da população? Ainda que sejam cada vez mais recorrentes as situações de rupturas de stock de vacinas nas farmácias, sem que disso se faça grande nota na comunicação social…
E já agora, se estamos a falar dos pais serem obrigados a vacinar os filhos, porque não falar do dever do Estado, para com a Saúde Pública, de comparticipar as vacinas que ainda hoje não estão incluídas no PNV mas que quase todos os pediatras recomendam, e cujos preços são proibitivos para uma boa percentagem da população?
Porque foi erradamente empolada a notícia?
Porque muitos órgãos de comunicação social, começando pelo Expresso, vieram logo com as teorias dos movimentos anti-vacinas (e a sua associação à homeopatia, como se ambos os fenómenos não pudessem ser distintos). Mesmo quando se demonstrou que a situação da jovem infectada e do próprio bebé não estavam relacionadas com este movimento, o Expresso recusou mudar a sua orientação editorial e, ainda que com outra roupagem, continuou a insistir nesta narrativa. Estaria a tentar forçar a criação de um espaço de debate político que colocasse na agenda a discussão sobre tornar o PNV obrigatório e as eventuais sanções a quem não o cumprisse?
Porém, todo este frenesim serviu para remeter para segundo plano muita coisa. Como a mudança de opinião do Ministério da Saúde quanto às actividades formativas promovidas pela indústria. Após a proibição das mesmas nas instalações do SNS, como forma de prevenir os conflitos de interesse, eis que agora, menos de um ano depois, podem voltar a ser feitas no SNS desde que com o aval científico da Ordem dos Médicos.
Ora, aquando da proibição, o actual presidente do Conselho Directivo da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos veio contestar a medida alegando que o Estado se havia demitido do seu dever de garantir a actualização de conhecimentos aos médicos e que a indústria se havia substituído ao mesmo na colmatação dessa necessidade.
Tendo esta linha da raciocínio inúmeras fragilidades, desde logo porque o médico não aplica o conhecimento que tem apenas quando está a exercer no SNS (embora utilizem muitas vezes os recursos deste para aprimorar técnicas que depois rentabilizam no privado), a verdade é que a solução agora encontrada não só peca por não solucionar o problema de fundo, que é garantir o acesso a actualização de conhecimentos com salvaguarda dos conflitos de interesse (que se traduzem normalmente numa oneração dos recursos públicos, e nesse sentido lesivos do interesse público), como opera uma desresponsabilização ainda mais gravosa do Estado e uma transferência de responsabilidades e poderes para uma associação privada de direito público (Ordem dos Médicos).
Primeira questão: que garantias podem ser dadas que estão em vigor, e devidamente aprovados em regulamento, as regras e mecanismos que permitirão uma separação cristalina entre aquilo que são acções de promoção de novos produtos e as que são acções de formação, merecedoras do respectivo aval científico?
Segunda questão: como é possível institucionalizar-se uma “renda moral” (estaremos bem se for apenas moral) para uma ordem profissional, atribuindo-lhe capacidade formal para interferir naquilo que são dinâmicas empresariais e de negócio, logo, do foro do direito privado e da livre iniciativa económica, comuns e frequentes nas indústrias farmacêutica e dos dispositivos clínicos?
Terceira questão: o SNS não tem capacidade para criar comissões de avaliação da idoneidade científica dentro de cada entidade prestadora de cuidados, passando estas a chancelar a idoneidade das actividades formativas que se queiram desenvolver dentro das suas instalações? Este outsourcing de responsabilidades e deveres do Estado tem mesmo de acontecer?
Quarta questão: é assim que se combate o conflito de interesses e a possibilidade de fraude e corrupção, ou é assim que se abre espaços para a sua proliferação?
Não será indiferente a este desfecho o momento de tensão e contestação levado a cabo pela classe médica junto da tutela, como se pode constatar no pré-aviso de greve publicado pelo SIM. Mas há cedências e cedências. Além disso, estamos mais uma vez a promover a confusão de papéis quando vemos Ordem e sindicatos médicos a encetar o mesmo combate contra a tutela. Se é verdade que os sindicatos representam os interesses privados dos médicos, a Ordem tem a obrigação legal de representar o interesse público no que respeita à garantia da qualidade dos cuidados médicos que são prestados à população.
E quando olhamos para o pré-aviso vemos muitas exigências monetárias mas nenhuma auto-exigência de rigor e de mudança de funcionamento do sistema em prol de uma maior eficiência. Antes pelo contrário, basta ver a posição da Ordem dos Médicos quanto ao acto em saúde para se perceber que teima em manter o SNS e todo o sistema de saúde preso aos mesmos cânones que nos têm arrastado para um encarecer sistemático dos custos com a Saúde. Sem reengenharia de processos jamais o dinheiro chegará. Mas fica claro que essa não é a preocupação dos actuais dirigentes da classe.
Muitos acharão que me estava a referir à Alice do País das Maravilhas no início deste post. Mas não. Estava mesmo a referir-me à Alice de Resident Evil.
Faz falta alguém para enfiar uns quantos rotativos nestas mutações intelectuais que encontramos neste buraco onde caímos. E acabar com o “chapéu-de-chuva” (umbrella) que os resguarda e lhes legitima a acção. Se não, ainda acabamos com a “humanidade” tal como a conhecemos e só ficam os “bichos”.