Blogue Insónias

A noite que mudou a minha vida

Passavam poucos minutos das vinte e uma horas de um domingo chuvoso, 4 de Março de 2001, quando me preparava para ver com o meu sogro a crónica dominical do Profº Marcelo Rebelo de Sousa, quando recebo uma chamada no meu telemóvel. O meu amigo Paulo Silva, que vivia no Torrão, informava-me que carros dos bombeiros de Entre-os-Rios se deslocavam para a Ponte Hintze Ribeiro porque teria ocorrido um acidente com um autocarro. De imediato me desloquei acompanhado pelo meu sogro para a Ponte, e, à medida que me ia aproximando da mesma, os gritos que se ouviam iam dizendo o que jamais imaginara.

Afinal, estávamos numa hora em que, normalmente, muitos carros cruzavam aquela Ponte, uns com passageiros que iam para o Porto para mais uma semana de trabalho, outros que se deslocavam para a outra margem do Rio, após a passagem de um domingo em família.
Eu tinha chegado há poucos dias da cidade do Porto aonde tinha nascido o meu primeiro filho meu filho, tinha ele trinta e seis dias de idade, quando passou dias sem ver o seu progenitor.
Aquela era a ponte que fazia a ligação entre os concelhos de Castelo de Paiva e Penafiel, encontrando-se registada como património da antiga JAE – Junta Autónoma das Estradas e da Direcção de Estradas do Distrito do Porto.
Estava eu praticamente no início do meu primeiro mandato autárquico, em que coloquei como um dos principais investimentos para o concelho, a nova ponte sobre o Douro. Eis que ficamos mais pobres sem munícipes que perderam a vida e sem a Ponte.
Tudo me acontece.
Num País em que se discute muito a regionalização e a mesma nunca mais vai para o terreno. Num País em que continua a existir diferenças de tratamento entre o litoral e o interior, fiquei naquela noite com mais vozes ao meu lado.
O concelho de Castelo de Paiva que me habituei a frequentar desde tenra idade, terra do meu pai, é um case study para qualquer “fenómeno” de regionalização que se venha a concretizar no País.
Quando assumi a função Presidente de Câmara em Janeiro de 1998, os assuntos do deste concelho tratavam-se em oito distritos e em quinze cidades, deste País.
Na área da Saúde, era com a Administração Regional de Saúde do Centro, em Coimbra, na área da segurança, GNR, pertencíamos a Oliveira de Azeméis e a Coimbra, ao nível da Cultura, a Direcção Regional situava-se em Vila Real, no sector da educação, pertencíamos ao Centro de área Educativa, com sede na Feira, ao nível do primeiro ciclo, e à DREN, no Porto, aos outros níveis.
Nas acessibilidades, para tratar da manutenção das estradas nacionais existentes no concelho ia à Direcção de Estradas de Aveiro e a Viseu (EN 225), para a construção de novas acessibilidades tinha que ir a Almada, sede da então JAE, situada no Distrito de Setúbal.
A nível religioso pertencemos à Diocese do Porto, e em termos de NUT, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte.
No sector telefones estamos dependentes de Penafiel, a nível de electricidade (EDP) os assuntos são tratados em Guimarães, a Comissão Regional de Reserva Agrícola, situa-se em Braga, o Governo Civil é em Aveiro e pertencemos à Associação de Municípios do Vale do Sousa, com sede em Lousada.
Estamos numa verdadeira encruzilhada. E assim tudo me acontecia.
E naquele fatídico 4 de Março quando cheguei à Ponte pouco depois do acidente, encontro o Inspector Distrital dos Bombeiros de Aveiro, António Salazar, que tinha assistido a tudo, pois preparava-se para a travessia, em direcção ao Porto. De imediato, através dos sistemas móveis instalados no veículo da Inspecção procurou accionar meios de intervenção, que foram chegando, aos poucos, de todos os lados, logo depois, a GNR, os Bombeiros e o Delegado de Saúde de Castelo de Paiva, o vice – Governador Civil de Aveiro, entre outros. Pouco depois, os Sapadores de Vila Nova de Gaia e Porto, assim como o Comandante Moura, da Inspecção Nacional de Bombeiros.
Aos poucos, mas com a rapidez humanamente possível, era instalada uma estrutura de emergência (instalados haviam sido, já, potentes projectores para garantir a iluminação de todo o local) dirigida no sentido de encontrar explicação e, sobretudo, força capaz de minimizar, nas suas consequências, a terrível tragédia que acabara de ocorrer, embora todas as pessoas, no local, tivessem a verdadeira noção de que pouco ou nada se poderia fazer, mas tornava-se imperioso dar alguma resposta à ansiedade patenteada pelas centenas de pessoas que, entretanto, se juntavam em ambas as margens do Douro, muito especialmente pelos inúmeros familiares das vítimas da grave ocorrência.
Era preciso informar. Informar com rigor e com precisão. Que, afinal, estavam em causa muitas dezenas de vidas humanas.
Mas, àquela hora, pouco se poderia, já, fazer, tais eram a velocidade das águas do Rio Douro e a escuridão no local. Num ápice, também as ligações por telefone fixo e móvel deixaram de se poder efectuar, pois as fibras ópticas tinham sido destruídas com a queda da Ponte ao longo da qual se desenvolviam.
Os acessos, pedonais e rodoviários, à margem esquerda, foram cortados. Os agentes da administração central não sabiam para onde enviar os socorros.
Chamava-se, persistentemente, atenção para os perigos… e 4 de Março de 2001 aconteceu, enquanto um qualquer projecto de profunda reparação (reconstrução?) duma velha ponte permanecia adormecido em certas gavetas do Poder.
Um outro membro do Governo, o Profº Carlos Zorrinho vindo de Évora chega mais tarde, o que não impediu que se tenha revelado um dos mais diligentes agentes no apoio a tudo quanto fosse fazer o máximo possível pelo, já, impossível. É com a chegada do Ministro Nuno Severiano Teixeira que o Governo chama a si, como lhe competiria, a liderança das operações no local.
Outras ilustres figuras, essas, chegaram consideravelmente mais tarde. Muito tarde…
Desde as primeiras horas a seguir ao acidente tive duas pessoas que muito me apoiaram e que nunca poderei esquecer, Luís Marques Mendes (que tinha acabado de chegar de Madrid onde tinha ido com o ProfºMarcelo Rebelo de Sousa ver um jogo ao Estádio Barnabéu) e Luís Filipe Menezes (que veio directamente do Estádio do Dragão com seu filho Luis Meneses), foram incansáveis e inexcedíveis.
Transfigurado pela dor e pela indignação, responsabilizei, através da comunicação social, e sem hesitar nas palavras, o Governo por esta terrível tragédia, exigindo tudo – tudo –quanto fosse susceptível de minimizar as suas consequências. Fui inflexível nessa exigência, acabando o Estado por assumir a responsabilidade, decidindo indemnizar as famílias das vítimas e os detentores de bens materiais perdidos no desastre.
Ao longo duma infindável noite, as estruturas municipais instalam uma morgue no pavilhão de desportos municipais assim como uma capela mortuária. Estava-se em presença de um dos mais trágicos acidentes de sempre da Europa moderna.


Com o amanhecer, começa a tentar-se colocar um cabo entre terra e os pilares sobrantes da ponte, para os mergulhadores procurarem penetrar nas caudalosas e gélidas águas Sem êxito, dado o rebentamento do cabo. Começava a desmoronar-se a esperança de se encontrarem corpos com vida.
São decretados três dias de luto municipal, enquanto os serviços municipais instalam uma morgue no Pavilhão dos Desportos Municipais e uma Capela mortuária. Presto aqui a minha homenagem aos trabalhadores do município paivense, aos meus Vereadores da altura e ao Dr. José Manuel Lopes de Almeida, Presidente da Assembleia Municipal, que tudo fizeram para que às primeiras horas da manhã isto estivesse pronto.
Retratando, de certo modo, aquela que foi a minha vida ao longo daqueles dias de autêntico terror, a minha Esposa dizia no dia 6 de Março, e com certeza, também dominada pelo desespero, ao Jornal de Notícias, com o nosso filho, de, ainda, muito tenra idade ao colo: «Um dia, vocês vão ajudar a explicar ao meu filho o porquê da ausência do pai».

Gosto(38)Não Gosto(3)
Exit mobile version